O sol estava alto no
céu quando todos despertaram. Era uma manhã ensolarada, Azgher imperava
radiante no céu, apesar disso a temperatura estava agradavelmente fresca. Estavam
todos ainda atordoados e confusos, num estado de semi-torpor devido ao cansaço,
aos ferimentos e a influência maligna da energia liberada pelo coração no
momento de sua explosão. Novamente, havia mais comida esperando por eles no
centro da clareira e, sem hesitar, o grupo se reuniu ao redor dela para o desjejum.
Comeram calados, cabisbaixos, ainda deprimidos pela situação em que tudo
terminara: todos mutilados de alguma forma, o grupo dividido e o mal se
regenerando pouco a pouco dentro da torre. Depois de comerem, Anix pediu a
Orion o seu colar emprestado e chamou por Sam. A jóia brilhou como de costume,
mas a imagem do menestrel não surgiu dentro dela como era esperado. Apenas uma
névoa difusa podia ser vista na pedra. A voz do bardo ecoou em meio a um
chiado, como se Sam falasse no meio de uma forte chuva. A comunicação era confusa
e partes da conversa se perdiam no meio da chiadeira. Era evidente que algum
poder extremamente grande interferia no objeto.
_ Sam! – disse Anix, sua voz era ainda sonolenta. –
Sabe nos dizer em que dia estamos? Nós saímos
da torre, e estamos em um daqueles círculos de pedra, dormimos aqui e não sei
bem ao certo por quanto tempo, mas desconfio que não foi apenas uma noite que
passamos aqui. – Anix olhava em seus braços e notava que a cor de sua pele
tinha se alterado, ficando mais clara. Os olhos que antes se espalhavam por seu
corpo tinham também desaparecido.
De onde estava Sam
checou sua runa de gor, ou a réplica espectral dela que acompanhava sua alma
aprisionada, e informou o que via: - estavam no primeiro dia do mês Pace, três dias haviam se passado desde a
chegada deles ao círculo e eles haviam dormido durante todo este tempo. Anix
relatou ao bardo tudo que acontecera desde a batalha travada contra Gulthias até
a chegada ao círculo de pedras. Pouco a pouco a interferência foi diminuindo,
até que o rosto de Sam finalmente surgiu no colar. Ao final, Anix acrescentou:
_ Então, Sam! Como você pode ver, nos encontramos agora
sem rumo. Estamos todos muito debilitados e não sabemos o que fazer.
_ Como sem rumo, meu amigo? Vocês têm uma missão a cumprir,
esqueceu? Onde Teztal foi com as jóias, este é o objetivo de vocês. Devem se
recuperar rapidamente e ir atrás dele. Vocês não conseguem desfazer estas
maldições com seus poderes? – disse o bardo.
_ Não, amigo, não esquecemos desta missão. Mas estamos
fracos e nossos poderes não estão funcionando direito. Além disso, não fazemos
idéia de para onde Teztal foi.
_ Creio que vocês precisarão de ajuda, alguém muito
poderoso para remover as mazelas de seus corpos e almas. E, além disso,
precisarão de um vidente poderoso para encontrar Teztal.
_ Mas, Sam, a única vidente que conheci era Enola, e ela
está morta – desesperou-se
Anix.
_ Calma, amigo. Há um lugar onde vocês podem encontrar a
ajuda de que necessitam. Mas, devo alertá-los! Isto envolve um grande risco.
Mas creio que isso não será problema, pois vocês já estão acostumados a correr
perigo, não é mesmo?
_ Sim, não tememos o perigo. Diga-nos onde encontraremos
ajuda.
_ Sigam para o leste do Reinado. Use sua magia de
teletransporte e vão para o reino de Hongari. No meio dele vocês encontrarão
uma cidade chamada Triunphus. Rumem até esta cidade e procurem pelo Oráculo.
_ Mas como o encontraremos? – perguntou Anix.
_ Basta perguntarem por ele. Todos em Triunphus já
ouviram falar do Oráculo. Ele poderá ajudá-los e com certeza será capaz de
descobrir o paradeiro de Teztal. Mas, devo lembrá-los, tomem muito cuidado. E não
morram por lá!
Anix agradeceu pela informação
e devolveu o medalhão a Orion, ficando pensativo. Não sentia mais seus poderes
arcanos percorrendo suas veias, como faria para transportar todos para o
Reinado?
Enquanto Anix
raciocinava, Orion se levantou e andou em direção da floresta. Soul Eater não
falara com ele nestes três dias que se passaram e ele não conseguia falar com
ela agora. Sabia que sua espada precisava se alimentar, então, decidiu ir
caçar. Mas, ao chegar aos limites do sítio arcano no qual se encontrava, Orion
se chocou com algo, uma espécie de barreira que o impedia de sair. Era como uma
cortina invisível, que bloqueava sua passagem. Orion a tocou com a mão direita
e sentiu sua textura. Sentia uma membrana fina e maleável, que se dobrava e se
esticava quando forçada, porém era extremamente resistente e o guerreiro não
conseguiu rompê-la ou deformá-la. Enquanto a tocava, ela cintilava num tom
amarelado muito claro, e ondulava como as águas de um lago com a passagem de
uma embarcação. Todos, com exceção de Legolas, puderam ver que a barreira
circulava toda a clareira. Orion tentou forçá-la mais ainda, golpeando-a com o
punho que lhe restava. Foram vários socos sem resultado, até que o guerreiro se
deu conta de que sua espada não tinha saltado para sua mão como das outras
vezes. Intrigado, Orion sacou Soul Eater e golpeou a membrana com sua lâmina
negra. Novamente o tecido mágico brilhou e se agitou, sem sofrer sequer um
arranhão.
_ Galanodel! – chamou Orion. – Vamos voar. – montado na coruja gigante, Orion subiu além do monólitos
que os cercavam, esperando ficar acima das copas das árvores, onde pudesse ver
a torre de Gulthias. Mas, dez metros acima do solo, sua cabeça se chocou com
algo macio. Ele olhou para cima e percebeu que a membrana fechava também o
alto, impedindo-os de saírem também por ali. O humano observou as ondulações do
tecido e viu que ele envolvia a clareira totalmente. Inconformado, ele desceu.
_ Estamos presos – suspirou Orion.
Anix foi até a borda
do circulo e tentou usar suas magias. Não funcionavam, seus poderes tinham
sumido. Abriu o olho em sua testa com grande dificuldade e tentou um raio
desintegrador contra a barreira. Nada aconteceu. Anix não conseguiu usar os
poderes do beholder com quem dividia o corpo e nem a consciência da criatura
ele conseguiu contatar, era como se ele não estivesse mais ali. Tentou usar seu
cajado mágico e também não obteve resultado. Irritado, o mago começou a golpear
a barreira com o cajado, praguejando a cada golpe.
_ Será que a barreira funciona dos dois lados? – perguntou Legolas.
_ Vamos testar – murmurou Nailo com dificuldade. O ranger
deu um assovio, chamando um pássaro que passava perto. O animal pousou sobre um
dos monólitos e ficou observando-o. Nailo se comunicou com ele através de
assovios, ergueu o braço e o pássaro, um pardal de quase três quilos, voou para
dentro da barreira e posou sobre ele. Nailo quase não suportou o peso do animal
e, depois de lhe fazer uma carícia, mandou-o embora. O pardal alçou vôo e
desapareceu no meio da floresta, como se a barreira mágica não existisse para
ele.
_ Acho que isto foi feito para prender só a gente – concluiu Nailo.
_ Ou não foi feita para prender animais. Galanodel, tente
atravessar a barreira
– disse Orion.
A coruja voou de
encontro ao tecido e se chocou nele, como se trombasse em um lençol estendido. Galanodel
forçou a passagem, batendo as asas com maior vigor até finalmente cruzar a
fronteira, como se abrisse um furo no manto que envolvia o refúgio. A ave
circundou a clareira e depois retornou, entrando sem dificuldades no círculo de
pedras.
_ Há algo estranho lá fora, uma sensação opressora. Aqui
me sinto segura, protegida.
Intrigado, Orion
retirou sua armadura e a colocou no chão. Desafivelou o cinto e colocou Soul
Eater ao lado da couraça. Usando apenas suas roupas de baixo, o humano tentou
atravessar a membrana, mas novamente falhou em sua tentativa.
Anix correu até a
pedra central, tentando decifrar suas runas. Era uma linguagem antiga e
complexa, algo que o elfo nunca havia sequer ouvido falar. Imediatamente ele se
lembrou do idioma usado por Gulthias na torre, e concluiu tratar-se da mesma
linguagem ou de uma variação da mesma. O monólito era feito de uma pedra branca
perfeitamente polida e extremamente sólida. Apesar de estar ali há eras, como
supunha, não demonstrava qualquer sinal de desgaste ou envelhecimento e nem
mesmo sujeira de qualquer espécie se acumulava sobre ela, era um material nunca
antes visto por ele. Sem obter alguma pista que os levasse à libertação, Anix
voltou novamente seus esforços contra a membrana.
Horas se passaram de
tentativas vãs em busca de um meio de escapar daquela prisão. A noite
finalmente chegou e a escuridão tomou conta do céu. O som de uma harpa se
espalhou pela floresta e uma voz doce acompanhou o ritmo das cordas numa
melodia inebriante. A música parecia vir de todos os lugares ao mesmo tempo, de
modo que era impossível localizar a fonte daquele som aprazível. Tomados pelo
cansaço e embalados pela canção de ninar que soava ao seu redor, os heróis se
entregaram ao sono que os dominava. Antes de adormecer, Orion pediu a Galanodel
que permanecesse acordada, vigiando os arredores.
A noite já era velha,
quando Legolas despertou. Um som de sinos ecoava ao redor deles. Era um
tilintar agudo de um pequeno sino que se aproximava cada vez mais, vindo da
mata em direção a eles. Era um som agradável e ritmado, quase uma melodia.
Legolas cutucou Orion com o pé, mas o humano dormia profundamente e apenas
resmungou em seu sono, algo típico para sua raça, pensou o elfo. Ele tateou ao
redor e encontrou o corpo de Anix. Deu um sacolejo e acordou-o. Depois
continuou cutucando Orion até ele despertar. Para surpresa do guerreiro, nem
mesmo Galanodel fora capaz de resistir ao poder da música e dormia ao seu lado.
_ Anix! Está ouvindo isso? – perguntou Legolas.
_ Sim – respondeu o mago com um bocejo. – É um sino. Que estranho, o som dele parece até uma música - os
olhos do mago piscaram pesadamente. – Acho
que já ouvi isso antes – Anix não disse mais nada, suas pálpebras pesaram e
o sono o dominou novamente. Antes de adormecer, teve a impressão de ver uma
criatura humanoide caminhando para dentro do acampamento.
O sol raiou novamente
e outra vez mais comida e água estavam postas diante deles. Comeram e beberam e
passaram o dia tentando encontrar uma forma de escapar. E tal qual acontecera
no dia anterior, não conseguiram. Mais de uma semana transcorreu desta maneira:
acordavam, comiam, tentavam escapar, não conseguiam e se punham a descansar; a
noite caia, a música invadia seus ouvidos e eles dormiam. Com o passar dos
dias, apesar do cativeiro, os heróis se sentiam cada vez melhor. Seus
ferimentos cicatrizaram por completo e, embora ainda velho, as condições físicas
de Nailo melhoraram e pouco a pouco os poderes mágicos que possuíam foram
retornando. Porém, nem Soul Eater, nem o Beholder respondiam e, para espanto de
todos, o corpo de Mexkialroy não apresentava qualquer sinal de decomposição. Aparentemente
a mesma magia que os prendia ali estava protegendo-os e purificando-os pouco a
pouco. A pele de Anix finalmente voltou ao seu estado normal. E, entusiasmado
por estar revigorado e por sentir novamente a magia fluindo em suas veias, o
mago correu até a barreira mágica e tentou vencê-la novamente. E outra vez não
conseguiu. Frustrado, Anix pensou em reagir de forma violenta, como fizera
diversas outras vezes desde que chegara à ilha, mas a raiva que normalmente se
apossaria de seu corpo, era apenas uma vaga lembrança agora. Legolas pousou a mão
gentilmente sobre seu ombro, confortando-o e os dois foram comer em paz. Sim,
paz. Essa era a sensação que sentiam dentro do círculo de pedras. Aquele era um
lugar de paz, de cura e de bondade, onde o mal não os tocaria e onde o mal que
havia dentro deles se dissipava pouco a pouco.
Os dias foram
passando, até que numa manhã Anix finalmente conseguiu ultrapassar a membrana e
deixar a proteção mágica. O elfo estava eufórico, poderia finalmente sair dali
e cumprir seus objetivos. Desejava retornar á torre e ver como estavam seus
amigos, desejava investigar mais aquele lugar em busca de respostas, porém uma
sensação opressora tomou conta de seu corpo, como se seus coração fosse
esmagado dentro de seu peito. Ao mesmo tempo sua respiração se tornou ofegante
e Anix sentiu-se cansado. Sentiu sua energia vital sendo sugada de seu corpo e
sentiu o dedo da morte aproximando-se dele. Assustado, saltou para dentro do sítio
arcano, onde sabia que estaria protegido. Lá estava seguro e uma sensação de
bem estar voltou a dominá-lo. Estavam livres, mas se deixassem aquele lugar,
suas vidas não durariam muito tempo.
Mais um dia e uma
noite se passaram. Estavam já no décimo
oitavo dia do mês. Fizeram o que já era habitual, comeram, beberam se
exercitaram e esperaram. Já no final da tarde receberam visitas. O som de um
trotar pesado chamou a atenção de todos. Segundos depois, o dinossauro que os
acompanhara até o sítio arcano finalmente retornou. Trazia em sua boca uma
enorme sacola feita de juncos, dentro da qual havia várias frutas e ânforas com
água. O enorme animal entrou no acampamento e depositou os alimentos próximos
ao centro do círculo. Segundos depois ouviram o som de passos leves e ágeis se
aproximando. Os passos eram acompanhados pelo tilintar sutil de um sino. O lobo
negro que sempre acompanhava o tricerátops surgiu da mata, saltando sobre seu
companheiro escamoso. Deitou sobre as suas costas, ajeitando-se entre seus
esporões ósseos e fitou os aventureiros. Sua expressão agora era de
tranquilidade. Suas orelhas estavam esticadas para trás enquanto seus olhos prateados
passavam ligeiros pelos heróis. Em sua orelha direita era possível ver um delicado
brinco em forma de guizo. Legolas tentou se aproximar, mas novamente os animais
ficaram agitados e não permitiram o contato físico.
A lua em escudo já se
erguia no céu límpido em seu último dia de glória antes de se tornar uma foice,
quando Galanodel deu o alerta:
_ Vem vindo uma coisa rápido, muito rápido! – a coruja apontou
para o céu e todos, exceto Legolas, viram algo se deslocando em grande
velocidade em direção ao local onde estavam. Quando estava mais próximo,
puderam distinguir o que era: um pássaro.
O pássaro invadiu a
clareira em velocidade estupenda. Parou flutuando sobre o centro dela como se
esperasse por algo. Anix ergueu o braço e a ave pousou. Não era um animal
comum, parecia feito de madeira, um animal artificial. Em sua pata estava um
pequenino papiro enrolado. Anix retirou o bilhete e a ave desapareceu no ar
magicamente. O mago desenrolou o pergaminho e viu que era uma mensagem de
Lucano.
Caros amigos,
Há um poder
ancestral gigantesco habitando a torre. O coração se regenera pouco a pouco e
absorve energia de algum lugar longe daqui. Pelo que pude perceber, durante a
batalha que tivemos, ele está retirando a energia de Squall e possivelmente
também esteja tirando a energia de mais algum de vocês, senão todos. Eu, próximo
disto, sinto minha energia sendo absorvida e sinto como se ele tentasse dominar
minha mente. Imagino que vocês devam estar sentindo coisa parecida. Conversei
com Yczar e nós vamos sair de Galrasia para tentar encontrar um meio de impedir
ou ao menos retardar este processo. Peço que saiam da ilha e se afastem daqui o
mais depressa possível. Continuem com a missão, encontrem as jóias das almas e
eu irei me reunir com vocês assim que possível.
Lucano
Enquanto Anix lia a
mensagem do companheiro, a luz da lua inundou a clareira, produzindo um brilho
alvo na membrana mágica. Todos puderam ver vários buracos se formando na
barreira, como se ela estivesse se desmanchando aos poucos. Preocupados com seu
destino, os heróis decidiram confiar nas palavras de Lucano. Anix chamou Sam e
o bardo surgiu em uma imagem clara dentro do colar de Orion. Sam explicou a
Anix o local onde ficava a cidade de Triunphus e lhes desejou boa sorte. Anix
reuniu o grupo em um círculo dentro da clareira. Os heróis tocaram uns aos
outros, formando uma corrente. Anix se concentrou e proferiu as palavras mágicas.
A floresta e os monólitos foram ficando distorcidos, como se vistos por trás de
uma cascata, até desaparecerem por completo. A paisagem ao redor do grupo foi
se modificando até se tornar completamente nítida. Uma brisa fria bateu em seus
rostos, vinda dos pinheiros ao redor. Finalmente eles estavam fora de Galrasia.
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