Cerca de um mês havia
se passado desde o término da batalha final na torre de Gulthias em Galrasia,
era o décimo oitavo dia de Pace, o mês
dedicado a Marah, a Deusa da Paz. Dois dias antes, o mundo todo parara num
grande feriado, no qual nenhuma luta era travada, mesmo nas culturas guerreiras,
como se a própria Deusa da Paz descesse ao mundo e espalhasse sua influência
por todos os seus cantos. Legolas, Anix, Orion, Squall e Nailo, entretanto, não
festejaram. Os Escolhidos tinham enfrentado uma dura provação. Seus corpos
estavam mais que feridos, mutilados; suas mentes perturbadas, atormentadas pela
maldade com a qual tinham convivido por tantos dias e suas almas feridas,
corrompidas e sem esperanças. O tempo que tinham passado aprisionados dentro do
círculo de pedras sob os cuidados do misterioso lobo negro e seu dinossauro
companheiro, servira para aliviar suas dores e reduzir seus temores. Suas
feridas agora estavam cicatrizadas, o mal que os corrompia tinha sido dissipado
quase que completamente, suas mentes estavam mais calmas e confiantes, suas
esperanças estavam renovadas. Tinham agora um rumo, um norte para perseguir. Estavam
a caminho de Triunphus, em busca do conselho do famoso oráculo da cidade que,
esperavam, lhes revelaria o paradeiro de Teztal e seus asseclas. Com este
conhecimento, seriam capazes de encontrar as jóias que guardavam as almas das
pessoas que mais amavam, para libertá-las e finalmente por fim àqueles dias de
batalhas cruéis e intermináveis.
Sam Rael os havia
guiado até o local onde se encontravam agora, suas instruções tinham sido suficientemente
precisas para não atirá-los dentro de uma montanha ou coisa pior. Estavam à
beira de uma estrada de terra batida, cercada por matas ralas de pinheiros. O
clima era agradável, uma brisa fresca soprava dentre as árvores, refrescando
seus corpos já acostumados ao calor sufocante de Galrasia. Não sabiam em que
parte do reinado estava, mas estavam felizes por estarem ali, longe da ilha pré-histórica
e sua torre amaldiçoada. Restava apenas saberem o quão distantes estavam de seu
destino final.
Havia um pequeno
vilarejo a cerca de trinta minutos de caminhada a norte de onde se encontravam.
Com certeza não era a cidade que buscavam, mas lá poderiam obter informações e,
talvez, um mapa que os conduzisse até o destino. Prepararam-se para a jornada,
entusiasmados. Seria bom caminhar naquele início de noite, sem correr riscos,
sem preocupações. Deram os primeiros passos rumo à pequena vila quando um som
familiar e inesperado os deteve. Era um trotar pesado, de um animal muito
grande que os acompanhava. Olharam para trás e viram, com espanto, que não
estavam sozinhos. O imenso lagarto que os protegera em Galrasia estava
seguindo-os, acompanhado de seu inseparável amigo peludo. Lobo e dinossauro
continuaram andando, passando pelo grupo pasmo e tomaram a dianteira. À frente
do grupo, reduziram a marcha e olharam para trás, como se esperassem que os
demais os seguissem. Sem entender como aquilo acontecera, já que Anix não tinha
usado sua magia de teleporte nos dois animais, o grupo retomou a caminhada
lentamente. Algo estranho acontecia, como se os Deuses brincassem com eles.
A caminhada seguiu
sem incidentes. Legolas e Nailo andavam juntos, um dando apoio ao outro. Anix
voava baixo com sua vassoura, acompanhando o grupo atento a possíveis perigos.
Squall andava pesaroso, carregando o cadáver de seu companheiro de escamas
azuis, enquanto Orion estava absorto, conversando mentalmente com sua espada
que, finalmente, voltava a dar sinais fracos de vida, assim com a consciência
do ser que dividia o corpo com Anix.
O povoado era
pequeno, apenas umas duas dúzias de casas ao redor da estrada e algumas
pequenas fazendas próximas. A estradinha cortava a vila numa linha reta,
interrompida apenas por um poço comunitário encravado no centro do vilarejo. As
casas eram simples, pequenos sobrados de madeira e teto de palha, e as que
ficavam à beira da estrada eram em sua maioria pontos comerciais. Havia uma única
taverna, um curtidor de couros, uma estrebaria, um armazém, e outras lojas
menores. Era estranho uma vila tão isolada não ter prosperado mais. Havia pouco
movimento na rua àquela hora e as poucas pessoas que circulavam se afastavam
rapidamente ao avistar o grupo incomum que adentrava em seu território.
Pararam diante do
poço. Nailo se encostou em sua beirada para descansar, enquanto seus amigos
tratavam de conseguir o que precisavam. Squall deixou Mex ao lado do idoso
amigo e partiu em busca de suprimentos. Orion pediu licença aos companheiros e
partiu com Galanodel para caçar; precisava alimentar sua amiga e sua espada. Anix
foi em busca de informações que lhes dissessem onde estavam e quão longe
estavam do lugar aonde iriam. Uma pele pendurada diante da casa do coureiro
chamou sua atenção, fazendo com que ele caminhasse em sua direção sem se dar
conta disto. Era um couro cinzento e liso, de algum animal que ele não
conhecia, mas que possuía um par de chifres e um bico córneo em sua cabeça,
cuidadosamente mantidos presos à pele pelo caprichoso curtidor. Quando voltou a
si, Anix estava diante da porta do coureiro. Bateu.
_ Quem está ai? – gritou uma voz dentro da casa. Segundos
depois a porta se abriu e surgiu um homem de meia idade, calvo e de barba
grossa, vestido com roupas simples de cânhamo, já preparado para ir dormir. O
homem olhou para Anix com espanto. Vestes pesadas e elaboradas, três olhos, uma
máscara em forma de caveira cobrindo parte da face eram algo evidentemente incomum
para ele. Correu os olhos rapidamente pela rua e viu o dinossauro deitado ao
lado do poço e o dragão, que era Squall, perambulando pela rua. Assustado, o
homem fechou lentamente a porta, deixando apenas uma pequena fresta aberta, por
onde fitava Anix. – O que você quer? –
perguntou com voz trêmula.
_ Não se assuste, senhor. Quero apenas uma informação.
Meus amigos e eu – Anix
deu uma pausa, apontando para os companheiros na rua e assustando ainda mais o
humano – estamos indo para Triunphus e
gostaria de saber como faço para chegar lá!
Temeroso, o homem
estreitou mais a fresta da porta e respondeu:
_ Fica a norte daqui, a um ou dois dias de viagem. Não
sei direito, pois nunca fui para lá, nem quero.
_ E o senhor... – começou Anix, sendo interrompido.
_ Não sei. Se quiser mais informações, procure pelo Joe –
o homem
fechou bruscamente a porta enquanto Anix tentava agradecer. O mago retornou
para junto dos companheiros e relatou o que acontecera enquanto retirava a máscara
do rosto para evitar novas confusões. Viu um homem vindo pela rua e desviando
deles para entrar na taverna, foi até ele e o abordou, perguntando onde poderia
encontrar o tal Joe.
_ Ora, é só olhar atrás do balcão! – respondeu o homem,
apontando para o interior da taverna.
Anix e Legolas foram
até lá. Entraram no recinto e o encontraram quase vazio. Havia apenas quatro fregueses
dentro da taverna: o homem que entrara há pouco e que dividia uma mesa com um
halfling com o qual disputava um acirrado jogo de cartas, um homem de capa
negra, isolado em uma mesa no fundo do salão, e outro halfling sentado num
banco alto diante do balcão. Em sua frente esta o tal Joe, um homem alto, de
cabeça e braços estranhamente pequenos, que limpava animadamente uma caneca
enquanto conversava com o pequenino. Ao botar os pés dentro do salão, todos os
olhares se voltaram para os dois. Anix pegou a venda que cobria os olhos cegos
de Legolas e a usou para esconder seu terceiro olho, tentando não chamar tanto
a atenção. Os dois aventureiros foram até o balcão e tomaram assentos. Joe se
voltou para eles.
_ Pois não? – disse o taverneiro. Anix notou neste
momento que o próprio Joe era um halfling. Seu bar fora todo construído para
atender fregueses de tamanho humano que por ali passavam. Atrás do balcão, para
servir às necessidades de seu diminuto dono, havia um tablado que circundava
todo o balcão e escadinhas que subiam e desciam, permitindo que Joe conseguisse
chegar ao chão e alcançar as bebidas mais altas em sua prateleira. O pequeno se
deslocava sobre o tablado enquanto servia aos clientes, ficando da altura de um
humano. Espantado com a engenhosidade do pequeno atendente, Anix demorou um
instante antes de responder:
_ Preciso de uma informação. Por acaso você teria as
coordenadas da cidade de Triunphus? – perguntou o elfo.
_ Coordenadas? Por acaso tenho cara de cartógrafo – respondeu o
pequenino, sorrindo.
_ Bem Se tiver um mapa ou souber de alguém que tenha. Estou
indo para lá e preciso saber como chegar até ela.
_ Ah bom! Isso é muito fácil. Basta você seguir a estrada
rumo ao norte. Dá menos de um dia de viagem daqui até lá.
_ Muito obrigado – disse Anix. – Legolas, quer molhar a
garganta antes de irmos?
_ Sim, experimentem o vinho seco, está ótimo – disse o halfling
entusiasmado.
_ Está gelado? – perguntou Legolas.
_ Claro que não, amigo. Estamos na primavera, como
poderia estar gelado?
_ Então me traga uma garrafa que eu vou mesmo vou gelá-la!
_ Está brincando comigo? Por acaso está trazendo neve em
sua bolsa amigo?
– riu o pequeno.
_ Traga a garrafa e verá. Se duvida, faço uma aposta com
você. Cem moedas de ouro, que tal?
_ Está louco! Eu não tenho este dinheiro.
_ Então vamos fazer o seguinte. Eu lhe dou cem moedas, e
se eu ganhar a aposta você me paga cem moedas por ela. E eu não pago pelo
vinho.
Joe pensou por um
instante. A proposta do elfo era muito inusitada, ele não tinha como perder. Ainda
um tanto hesitante ele concordou. Correu até o fundo da taverna e voltou com
uma garrafa empoeirada, limpou-a e a colocou no balcão, diante de Legolas.
O arqueiro segurou a
garrafa com a mão direita e se concentrou. Canalizou seu poder glacial para
dentro do recipiente, fazendo-o quase congelar. Uma nuvem de vapor frio saiu do
gargalo, deixando todos espantados. Legolas deu uma golada, satisfeito. O vinho
era horrível, ao que parece a taverna estava abarrotada dele e Joe o estava
empurrando para todos os clientes.
_ Incrível! – admirou-se Joe. – Consegue fazer isto novamente? Dou-lhe outra garrafa se o fizer.
_ Claro – respondeu Legolas.
Joe trouxe mais duas
garrafas. Legolas resfriou-as e o pequenino pegou a que lhe pertencia e correu
até a porta do estabelecimento aos berros:
_ Venham, venham! Somente hoje, vinho gelado a duas
pratas a caneca. Venham antes que acabe.
Legolas riu e depois
pediu para ver a adega do pequenino. Lá usou seus poderes para resfriar todas
as bebidas, arrancando gritos histéricos e gargalhadas de Joe. Aquela noite
seria muito lucrativa para o pequeno.
Legolas a Anix foram
para a saída, enquanto mais fregueses começavam a chegar, curiosos pelo anúncio
do halfling. Enquanto saiam, foram abordados pelo homem de capuz negro.
_ Com licença, ouvi dizerem que estão indo a Triunphus. É
verdade?
_ Sim. Por que quer saber? – disse Anix.
_ É que também estou indo para lá. Será que se
importariam em dividir a fogueira na estrada comigo? – perguntou o homem,
enquanto retirava o capuz que cobria o rosto. Duas orelhas pontudas se
revelaram, era também um elfo. – Sou Galarden! – apresentou-se, por fim.
Anix olhou
desconfiado para o estranho. Pensou por um tempo e depois falou:
_ Vamos consultar meus amigos. Mas antes quero saber quem
é você e o que quer em Triunphus.
_ Estou viajando pelo Reinado, conhecendo-o. Ouvi falar
desta cidade e decidi conhecê-la. Sou um arqueiro, nasci em Lenórienn e agora
estou viajando pelo norte.
Anix e Legolas voltaram
ao poço, acompanhados de Galarden. Squall e Orion já tinham retornado e os
aguardavam junto com os outros. O feiticeiro havia conseguido rações para a
viagem e o guerreiro exibia, orgulhoso, sua espada novamente em chamas e viva
após petiscar a alma de uma pobre lebre.
_ Amigos! Este é Galarden. Nós o encontramos na taverna e
ele também está indo para Triunphus e pediu para nos acompanhar até lá – disse Anix,
apontando para o elfo que os acompanhava. – O que vocês acham?
_ Você pode até nos acompanhar até lá, mas estaremos de
olho em você – disse
Nailo, ofegante.
_ Sim. Vê este dragão azul. Nós o matamos e faremos o
mesmo com você se tentar qualquer gracinha – Ameaçou Squall, após usar seu anel
para assumir sua forma dracônica e cuspir uma rajada de chamas para o alto.
Galarden observava atônito
à demonstração de poder daquelas pessoas. Tinha visto muitas coisas estranhas
desde que deixara a terra natal, o lar destruído dos elfos. Mas algo o dizia
que se ficasse junto daquele grupo, veria coisas que sua imaginação sequer
seria capaz de pensar. Ainda intimidado pelas ameaças, ele concordou com um
aceno de cabeça. O grupo juntou seus pertences e partiu. Dinossauro e lobo já os
aguardavam na saída da cidade. Era possível ver na expressão do lobo a sua
inquietação, como se o animal pressentisse problemas. E pressentia.
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