Lucano levou a mão à testa, enxugou o suor que brotava. Conferiu a perna ferida no salto para dentro da torre. Nada grave, apenas pequenos arranhões e uma torção leve. Faltava conferir a situação dos companheiros, mas algo mais urgente chamava-lhe a atenção. O dragão. Squall conversava com o monstro azul em cima do altar de pedra, usando a linguagem própria das feras lendárias. Pareciam estar se dando bem.
_ Quem és tu, Vermelho? O que fazes neste lugar maldito? – perguntava o prisioneiro. – E por que raios estás sob esta forma indigna?
_ Eu sou Squall – respondeu o elfo, rompendo o último grilhão que acorrentava o dragão. – Me transformei desta forma para me misturar melhor com meus companheiros. Estou aqui para resgatar algumas pessoas. E você, por que está aqui?
_ Eu sou Mexkialroy! – respondeu o monstro elevando a voz com orgulho ao pronunciar o próprio nome, que significava filho da luz no idioma dos dragões. – Estou aqui, pois fui um tolo! Esperava fazer desta torre meu covil! Mas outros já o haviam tencionado antes de mim. Entre eles aquela besta cheia de braços lá no alto e esses mortos que teimam em andar. Capturaram-me e prenderam-me aqui. Queriam sacrificar-me ao deus imprestável deles, a quem chamam de Ashardalon, para revivê-lo. Parece que tu serias o próximo, Vermelho, de acordo com as intenções dos bastardos – Mexkialroy ergueu-se. Esticou as asas e verificou se estavam feridas. Movimentou as patas, estalando os ossos e saltou para o chão olhando ao redor. – Mas, diga-me, Squall. Quem são esses a quem desejas resgatar? Teu tesouro? Teus escravos? – perguntou, por fim.
_ Não, não são nem uma coisa, nem outra. São meus amigos – respondeu Squall.
_ E esses que o acompanham? Vejo que tens bons escravos a servi-lo. Foram de grande valia agora há pouco. Quem são eles? – Mexkialroy caminhou entre os heróis, fitando e cheirando cada um, exibindo-se com imponência.
_ Bem, eles não são escravos! São livres – balbuciou Squall, sendo logo interrompido.
_ Livres? Percebo que és generoso, Vermelho! És generoso com essas criaturas inferiores. Curioso, muito curioso! – o azul falava com desdém, gargalhando e exibindo seus dentes pontudos. Legolas, que compreendia cada palavra, enervou-se. Decidiu não discutir com o monstro. Deitou-se sobre o altar e, rodeado pelas velas, ajeitou-se para dormir. Lucano, também irritado, alertava Dililiümi sobre o perigo que o dragão poderia representar, pondo-se em alerta num canto do salão enquanto conversava com sua espada.
_ Quero conhecer estes seres livre que o acompanham e servem a ti, Vermelho! – bradou o azul. Depois, voltou-se para Anix. – Tu, qual teu nome? – O mago não respondia. Não compreendia sequer uma palavra daquele idioma. O dragão irritou-se. – Estou falando contigo, três-olhos! Responda-me! Qual é teu nome?
_ Mex! Ele não compreende nosso idioma. Deixe que eu os apresente – disse Squall. – Esse é meu irmão Anix. Aqueles são Nailo, Orion, Lucano e Legolas.
_ Irmão? Estás me dizendo que este franzino é teu irmão? – Mexkialroy riu novamente. – Mas o cheiro dele é estranho. Não vejo como é possível que seja teu irmão, Vermelho. Bem, isso agora não importa. Irmão ou escravo, não faz diferença para mim. A única coisa importante agora é que, graças a ti, estou vivo. Por isso tenho uma dívida a pagar. Tua paga será meu serviço, Vermelho!
_ Hã? Como assim? – perguntou Squall.
_ Salvaste minha vida, Squall, o Vermelho! Por este ato, hei de acompanhá-lo e auxiliá-lo até que eu sinta que minha dívida esteja paga – Mexkialroy falava na língua comum, para que todos os presentes pudessem compreendê-lo. – Ajudar-te-ei a resgatar as pessoas que lhe são caras. Ouçam-me todos vocês! – bradou o dragão dirigindo-se ao grupo. – Estou em dívida com vosso mestre. Por isto irei acompanhá-los de hoje em diante. Bem vindos ao inferno! – sorriu o dragão por fim.
O anúncio surpreendeu todos. Inesperadamente agora havia um dragão no grupo. Não alguém como Squall que apenas possuía em suas veias o sangue dracônico cada vez mais forte. Desta vez era um dragão real, em forma, aparência e maldade. Se os Deuses os ajudavam, como dissera Marah, dessa vez era Megallokk, Deus dos Monstros, quem interferia no destino dos Escolhidos.
_ Vamos, Vermelho! Vamos procurar aqueles a quem vieste resgatar! – chamou Mexkialroy, ganhando o corredor a passos largos.
_ Não faça barulho! – reclamou Anix devido às passadas despreocupadas do dragão que ecoavam por todo o andar.
_ Ora, elfo. Não me dê ordens, criatura inferior! Por que estás tão assustado? – rugiu o azul.
_ Não faça barulho, idiota! Vai alertar nossos inimigos desse jeito! – respondeu o mago, enervando-se.
_ Modere tua língua, Três-olhos! Pois que venham todos os inimigos! Acabaremos com todos e assim pagarei logo minha dívida! – retrucou Mexkialroy.
_ Você não entende mesmo! Não podemos chamar a atenção, não sabemos que tipo de inimigos há nesse lugar. Enfrentar todos de uma vez é estupidez. Além do mais, estamos todos cansados e fracos. Precisamos dormir e recuperar nossas energias. Gastei quase todo o meu poder mágico – explicou Anix.
_ Pois fique descansando, então. Anix, certo? Teu mestre e eu iremos explorar este lugar enquanto vocês dormem. Se precisarmos de teus serviços, chamaremos! – o dragão desapareceu da visão do mago, rapidamente acompanhado por Squall. Antes de deixar o salão, o feiticeiro se virou e disse:
_ Não se preocupe, só quero dar uma olhada nessas portas para ter certeza que estamos seguros. Já volto!
Squall saiu. Legolas já dormia, Lucano limpava sua espada e Orion descansava sentado em um canto, calado. Nailo chamou Relâmpago e foi até a porta que dava para o corredor.
_ Vou dar uma olhada lá em cima – disse ele usando o idioma dos elfos. Quero ter certeza que não ficou nenhum monstro escondido naquela sujeira. Tome cuidado com aquele dragão. Se ele aprontar alguma, me avise. Sou especialista em caçar esse tipo de bicho, se ele tentar nos fazer algum mal, vou adorar fatiá-lo!
_ Tudo bem, Nailo! E como pretende chegar lá em cima? – perguntou Anix.
_ Escalando, oras!
_ Tome isto, então! – Anix enviou a vassoura mágica para o amigo. Nailo montou no objeto e segurou Relâmpago, assustado, no colo. Pretendia terminar logo a checagem, deveria estar realmente cansado, pois o lobo estava muito mais pesado. Até seus olhos eram enganados pelo cansaço, pois além de pesado, o lobo parecia maior.
Voaram para cima, através da entrada e chegaram ao piso externo da torre. Nailo pôs o lobo no chão e juntos os dois começaram a vasculhar todo o andar. Uma dupla de criaturas se aproximou voando, chamando sua atenção. Eram Galanodel e sua filha.
_ Nailo! O que aconteceu? Onde estão todos? – perguntou a ave.
_ Estão lá embaixo – respondeu o ranger apontando para o buraco no chão. – Estão bem. Tivemos alguns problemas, uns monstros nos atacaram, mas agora tudo está seguro.
_ Vou até lá! – disse a coruja, saltando pela entrada.
Nailo retomou sua busca. Dejetos, carcaças de animais devorados, escombros e sujeiras diversas estavam por todos os lados. Próximo da borda, ao norte da torre, Nailo encontrou um vasto tesouro escondido. Milhares de moedas e ouro, prata e cobre formavam uma grande pilha reluzente. Jóias davam um brilho colorido ao tesouro que havia sido cuidadosamente depositado naquele local como descobriu Nailo. Um rastro de moedas, que conduzia para a entrada, denunciava o intuito dos seres inumanos que tinham atacado Legolas. Estavam levando o tesouro de volta para dentro da torre. Nailo investigou e descobriu pegadas antigas ao redor do tesouro, pegadas de dragão. Uma escama negra e velha sobre a montanha de moedas terminou por desvendar o mistério. O dragão negro cujo corpo jazia há tempos no topo da torre, havia invadido a torre e a transformado em seu covil, tal qual o próprio Mexkialroy desejava fazer. O dragão negro roubara o tesouro de dentro da torre e o fizera de cama. O mesmo dragão tentara devorar Tork conforme o troglodita relatara e, não muito recentemente, fora derrotado pela tal cria da lua e seus ajudantes mortos-vivos para logo depois ser sacrificado em nome do misterioso Ashardalon.
Nailo terminou sua busca aliviado. Não havia mais ameaças naquele andar. Deixou o tesouro, do qual tomariam posse mais tarde, e foi procurar um local para descansar. Levava consigo dois objetos importantes que encontrara no meio das moedas: um frasco de poção e um anel. No pequeno pote havia um líquido esverdeado e viscoso. Pensou tratar-se de uma poção de cura, mas o cheiro do líquido logo fez com que desistisse da idéia. O anel era de ouro puro e possivelmente tinha algum poder mágico. Entalhes internos mostravam o desenho de um pé sobre uma linha sinuosa. Deveria ter algo a ver com movimentação, pensou o ranger. Assim, Nailo pôs o anel em seu dedo e passou a testá-lo. Saltava, corria, pulava tentando andar nas paredes, sem resultado. Somente quando pisou sobre uma das muitas poças d’água que se acumulavam no piso desgastado e irregular que ele percebeu o poder do anel. Seus pés não afundaram na poça, o anel permitia que seu dono caminhasse sobre a água como se estivesse sobre o chão maciço. Satisfeito, Nailo limpou um pedaço de chão, protegido pelas presas rochosas da garoa fina na qual se transformara a tempestade, e sentou-se. Acendeu seu cachimbo e pôs-se a esperar pelos companheiros.
Abaixo dali, Orion explicava a Galanodel o que acontecera, narrava a batalha contra os vampiros e contava à coruja do novo integrante do grupo: Mexkialroy. Legolas dormia enquanto Lucano e Anix investigavam o aposento, espantados com o que descobriam.
_ Olhe, Lucano! – disse Anix. – As paredes não fora simplesmente derrubadas. Elas foram corroídas. Ácido. E pela forma como foram dissolvidas, tenho certeza de que isso foi obra daquele dragão negro lá em cima.
_ Impressionante! – respondeu o clérigo. – Isso aqui também. Olhe o altar. Veja esses símbolos e velas. Eles não estavam simplesmente matando o dragão azul. Isso aqui era um ritual complexo de sacrifício. Já vimos isto antes. Teztal fazia isso para dar vida àquela estátua de pedra. Esses vampiros querem fazer a mesma coisa para dar vida a esse tal Ashardalon, a quem eles chamam de deus.
_ E você conhece algum deus com esse nome, Lucano?
_ Não, não conheço! Nunca ouvi falar.
_ Engraçado, porque eu tenho a impressão de já ter ouvido esse nome em algum lugar. Mas não sei onde.
_ Talvez seja o nome pelo qual eles conheçam Teztal. Mas não creio nisso.
_ Eu também não. Bem, e quanto aos vampiros? Acha que podem retornar? Afinal eles apenas viraram fumaça e desapareceram.
_ Acredito que sim. Não sei muito sobre essas coisas, mas sei que eles não foram destruídos. Temos que nos proteger e... – Um ruído forte, vindo do corredor, calou Lucano. Os dois elfos foram ver o que acontecia. Mexkialroy conversava com Squall, quase gritando.
_ Silêncio! – alertou Anix. – Querem nos colocar em perigo?
_ Mas que afronta! Como permites que este elfo fale desta maneira contigo, Vermelho? – bufou o dragão.
_ Ele está certo, Mex! Estamos fazendo muito barulho. Dessa forma só vamos atrair os inimigos – respondeu Squall.
_ Pois vamos logo acordar esses mortos e devorar suas carcaças podres. Onde está seu orgulho de dragão? Coragem, Vermelho! – Mexkialroy empurrou uma das portas ao norte, no final do corredor e a abriu. Ela, assim como todas as outras, trazia o emblema da testa de Squall entalhado sob a aldrava.
A porta aberta revelou uma pequena sala na borda da torre. Estava vazia, a não ser por sujeira e escombros espalhados pelo chão, pedaços do teto e do revestimento das paredes vencidos pela ação do tempo. Squall entrou na saleta, iluminando-a com magia.
_ Mex! Entre aqui, depressa! – chamou o feiticeiro. O dragão obedeceu.
_ Mex? Parece que já somos íntimos, não? – debochou o azul. – O que queres?
_ Tenho que lhe dizer algumas coisas.
_ Pois diga, Vermelho!
_ Pois bem! – começou Squall. – Primeiro. Aqueles lá fora não são meus escravos, nem são meus servos. Somos iguais, eles e eu. Eles são meus companheiros e, mesmo eu não confiando neles, eu os respeito. E exijo que você faça o mesmo.
_ Ora, mas por que? São inferiores. Como podes chamá-los de iguais?
_ Preste atenção! É melhor deixar de ser arrogante desse jeito. Você só está vivo graças à ajuda deles. Cada um deles sozinho tem poder para destruí-lo se assim desejarem. Lembre-se disso antes de menosprezá-los da forma como faz. Espero que tenha entendido isso.
Mexkialroy fez um muxoxo, riu e meneou a cabeça concordando em tom irônico.
_ Segundo. Nós o salvamos, mas, assim como meus amigos, você é livre. Não precisa ficar me seguindo por ai. Pode ir embora se quiser, viver a sua vida – continuou Squall.
_ Ora, não tomes decisões por mim, Vermelho. Escutai, Squall. Não entendo bem o que está se passa. Tu não te portas como um dragão, não permaneces com a aparência de um e ainda por cima chamas aqueles inferiores de iguais. Dizes não confiar neles, mas não creio que tentas me enganar. Chamas um dos elfos de irmão, o que tem três olhos e não tem cheiro de dragão. Andas com outros tipos estranhos. Um deles é tão frio quanto os mortos, outro passa o tempo a conversar com a espada, o terceiro trata aquele lobo gigante como se fossem da mesma espécie e por fim há aquele humano entre um bando de elfos. Não entendo essa situação, mas logo entenderei. Quanto mais fico com vocês, mais isto atiça a minha curiosidade. Quero entendê-los e tenho uma dívida a lhe pagar. Enquanto eu não saciar minha curiosidade e não sentir que tua paga foi feita, não irei embora. Podes te acostumar com minha presença, pois nada irá me fazer desistir.
_ Está bem, então. Pague sua dívida se é o que quer. Mas respeite meus amigos e tome cuidado com essa sua curiosidade. Há um ditado em minha terra que diz: “a curiosidade matou o dragão” – disse Squall.
_ Não te aflijas. Não temo teus amigos, mas tentarei tratá-los melhor. E lembra-te, os dragões não morrem – zombou Mexkialroy.
_ Veremos. E, por falar em morte, você por acaso acredita nos deuses?
_ Deuses? Não me importo com eles!
_ Nem com Megallokk?
_ Por que seria diferente com ele?
_ É o Deus dos Monstros, dos dragões.
_ Dos monstros pode até ser. Dos dragões, nunca! Não somos como estas bestas ridículas e estúpidas criadas por Megallokk! Somos dragões! Não precisamos deste deus!
_ E você por acaso já viu algum deus?
_ Não!
_ Pois se ficar conosco, verá! Vamos!
Squall e Mexkialroy retornaram para o salão de sacrifício. O dragão não perdera o ar imponente e arrogante durante toda a conversa e adentrava a sala como se fosse um rei se exibindo para os servos.
_ Squall, vamos todos lá para cima! – chamou Anix enquanto acordava Legolas.
_ Por que? – perguntou o feiticeiro.
_ É mais seguro! Lucano e eu achamos que aqueles vampiros podem reaparecer.
_ Pois então vamos ficar e esperar que apareçam! Vamos acabar com todos! – rugiu o dragão.
_ Não, precisamos descansar! – disse Anix. – Ainda não estamos prontos para outra batalha.
_ Covardes! – zombou o monstro, indo para a saída.
Legolas parou embaixo do buraco de saída e evocou seu poder. O chão sob seus pés se congelou num instante e duas colunas de gelo começaram a surgir do chão, erguendo-o. Em poucos segundos Legolas já alcançara o andar superior. Abaixo dele, sob seus pés, uma escada de gelo se formara para permitir a saída dos amigos que logo o acompanharam.
_ Nossa, mas não é que ele sabe fazer algo interessante? – cochichou o dragão para Squall, em seu próprio idioma. Legolas ouviu, mas não respondeu.
_ O que fazem aqui? – perguntou Nailo.
_ Vamos passar a noite aqui fora. É mais seguro que lá embaixo – respondeu Anix.
_ Ainda acho que deveríamos esperar os inimigos aparecerem e acabar com todos – resmungou o dragão.
_ Cale-se, dragão! – gritou Legolas. – Sua arrogância já está me cansando! Você se acha tão superior, mas se não fosse por nós, você já estaria morto. Se não calar essa boca logo, vou transformar seu couro numa peneira. Fique quieto e deixe-nos dormir em paz, e pela manhã você verá se somos covardes e conhecerá nosso poder.
_ Está bem, elfo! Se insistes, podes dormir tranqüilamente. Não precisas ficar nervoso. Durma, elfo. Durma enquanto eu vigiarei teu sono – zombou Mexkialroy. O dragão desfilou sorridente pelo meio do grupo e acomodou-se perto da borda da torre. Tomados pelo cansaço, os heróis não responderam à provocação e foram dormir.
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