Mal abriu os olhos e
saudou seus companheiros, Anix sentiu a torre tremer. Orion já se acostumara com aquilo durante a
noite, mas mesmo assim seu coração disparava a cada chacoalhar da construção.
Os tremores pareciam ficar cada vez mais fortes.
Em silêncio, cada um
dos aventureiros se preparou para o combate iminente. Seria, esperavam, o
último naquela torre amaldiçoada. Desejavam que fosse o último em suas vidas.
Após tantas batalhas, tanto sofrimento e tanto sangue em suas mãos, aqueles
jovens heróis desejavam um pouco de paz em suas vidas.
Ela não viria tão
cedo.
Duas horas após o
amanhecer todos estavam prontos para invadir o centro da torre. Seus corpos
estavam descansados e curados, além de fortalecidos por seus poderes mágicos.
Até mesmo Sam havia sido convocado para, através do pingente de Orion, conjurar
seus poderes sobre os companheiros.
_ Amigos, quero conversar com vocês – disse Anix, parando
diante da porta. – Quero que ouçam com
atenção minhas palavras. Por mais que tenhamos feito nesta jornada, por mais
que tenhamos falado, odiado ou amado, peço que nunca deixemos de ser o que
somos e sempre fomos. Somos amigos, irmãos em busca de justiça. Não sei o que
há atrás desta porta, mas seja o que for, é o nosso destino. Estamos aqui para
isso, pois fomos escolhidos pelos Deuses para isso. E juntos triunfaremos!
O aceno de cabeça
silencioso de cada um ali presente bastou para embasar as palavras de Anix.
Estavam todos unidos, por mais que a dor e o sofrimento dos tempos recentes os
tivesse modificado, ainda eram um grupo. Eram como um só.
Assim, Anix colocou as peças douradas
na fechadura mágica. Juntos os pedaços da chave emitiram um brilho místico e a
porta (e a torre inteira) começou a tremer. A porta começou a se mover
lateralmente e todos puderam perceber que a câmara central da torre girava
lentamente. Finalmente uma fresta surgiu, expandindo-se e revelando uma câmara
circular iluminada pelo brilho de várias pedras mágicas fixadas nos suportes de
tochas na parede.
A câmara devia ter
uns dez metros de diâmetro. Estava empoeirada e repleta de teias de aranha. Uma
porta se abriu na borda oposta, revelando o corredor onde os aventureiros
haviam travado o primeiro confronto contra Flint Stone. Diante dela havia um
cadáver ressequido abandonado no solo há eras. O corpo se ergueu, como que
atraído pelo cheiro dos vivos, e começou a caminhar na direção dos heróis.
Legolas disparou seu arco, arremessando o corpo – agora congelado - de encontro
à parede. A flecha de prata se desprendeu magicamente do cadáver derrotado e
retornou à aljava do elfo um instante depois. Legolas deu o primeiro passo,
invadindo a sala em busca de uma passagem adiante. Encontrou-a acima de sua
cabeça.
Tal qual um dos
girallon havia dito, a torre voltava a subir a partir das catacumbas. Eram três
andares, cada um a nove metros de altura do anterior, todos sem escada ou
qualquer outra forma de acesso que não fosse o enorme buraco central em cada
piso. Cada pavimento formava um anel de cerca de vinte metros de diâmetro e no
último deles estava aquilo que buscavam.
Havia pessoas andando
pela borda do fosso no terceiro andar, todas de pele bronzeada e de brilho
metálico. Uma destas pessoas chamou a atenção de todos. Era uma mulher loura,
belíssima e de tez dourada como uma pepita. Era alguém que os companheiros
conheciam bem.
_Guncha! – exclamaram os heróis em coro. Era como se um
pesadelo se tornasse real. A genasi dourada caminhava vagarosamente pela borda
do fosso, esbanjando beleza e crueldade. Os heróis lembraram-se dos dias de
sofrimento sob a tutela da mulher.
Ela, porém, não
estava sozinha. Havia outras criaturas igualmente temíveis andando sobre o
último piso da torre. Eram outros genasis e havia mais alguém, alguém que os
heróis tinham sido obrigados a odiar: Zulil.
Squall bateu as asas
com força, erguendo-se do solo em velocidade surpreendente. Nailo saltou em
suas costas, com ambas as espadas coruscando furiosamente. Os dois decolaram
sem dar tempo de reação aos amigos, sem dar aos inimigos a chance de notá-los.
Os quase trinta metros que os separavam dos inimigos foram vencidos numa fração
de segundo. Passaram pelo primeiro nível sem sequer notar os vários corpos
mutilados espalhados pelo chão, ou a bancada imunda coberta de sangue escuro e
dezenas de olhos. Fora um erro. Ao atingirem o nível posterior, o equivoco foi
revelado. Squall voltou à sua forma élfica, as espadas de Nailo perderam o
brilho e os dois continuaram a subir cada vez mais lentamente, movidos pela
inércia, até chocarem-se contra uma parede invisível que bloqueava o acesso ao
último andar.
Enquanto despencava
de volta, Nailo viu três olhos enormes embutidos no alto da parede circular em
três pontos eqüidistantes. Velas negras crepitavam ao redor dos olhos,
protegidas por trás de sólidas paredes vítreas.
_ Olhos de beholder! – gritou o ranger, revelando a já
conhecida tática de Zulil para bloquear os poderes mágicos dos invasores.
O chão se aproximava
perigosamente dos heróis. Ambos agitavam os braços, tentando nadar no ar,
tentando encontrar algo em que pudessem se agarrar. Com a ajuda dos amigos,
Nailo e Squall conseguiram evitar o choque contra o solo. Os dois se agarraram
a Legolas e Orion, e interromperam sua queda um andar antes do nível das
catacumbas.
_ Zulil está lá, com certeza! – mal terminou de
dizer estas palavras, Nailo viu o terrível inimigo surgindo no último andar.
Zulil caminhava vagarosamente sobre o piso mágico invisível que cobria a
abertura central do último pavimento. Observava a todos com desdém.
_ Então vocês conseguiram chegar até aqui? Tolos!
Chegaram tarde demais, ou melhor, chegaram na hora exata – começou o elfo
irritado. Sua irritação, no entanto, transformou-se em um sorriso sarcástico,
emoldurado por uma expressão vitoriosa e arrogante. – Chegaram bem a tempo de testemunharem meu triunfo total. Finalmente
consegui terminar meu ritual. A partir de agora serei invencível, terei um
exército inteiro de soldados indestrutíveis marchando sob meu comando – o
nível da voz de Zulil se elevava pouco a pouco, despertando a atenção de todos.
Em segundos ele estava rodeado por genasis, entre eles Guncha, Maeka e Yupan, e
também pelo vampiro Gulthias.
_ Cale a boca, seu idiota! – gritou Legolas
disparando o arco. Uma flecha prateada cortou o ar e se chocou contra a
barreira invisível do terceiro andar. O projétil despencou até passar por todo
o segundo andar, onde o campo de anti-magia reinava absoluto, e depois
desmanchou-se no ar, reaparecendo magicamente dentro da aljava do arqueiro.
_ Tolo! Todos os seus esforços são inúteis. Seria melhor
que vocês tivessem se unido a mim quando tiveram a chance. Mas agora é tarde
demais para isso. Testemunhem o nascimento de uma nova era. Assistam com pavor
ao despertar de meu mais novo e invencível escravo. Erga-se Teztal! Atenda ao
comando de seu mestre!
Zulil ergueu os
braços, gargalhando em puro êxtase. Atrás dele, um lençol pardo movimentou-se,
erguendo-se de uma espécie de altar de pedra. O lençol caiu no chão e revelou
um rosto prateado que os heróis conheciam e odiavam. Era Teztal.
O genasi levantou-se
vagarosamente, olhando ao redor com cautela, fazendo o reconhecimento do
território onde estava. Sob o comando de Zulil, Teztal aproximou-se da borda e
encarou os inimigos. Seu rosto estava estático, sem expressão ou emoção, era
uma criatura sem mente, totalmente submissa ao intelecto maligno de Zulil.
O mago caminhou sobre
o piso mágico, gargalhando, debochando dos heróis. Teztal o observava, como que
esperando pelas ordens de seu novo mestre.
_ Percebem? – perguntou Zulil, entusiasmado. – Minhas experiências finalmente deram certo.
Teztal é o meu primeiro escravo, o primeiro de muitos. Vou construir um
exército inteiro de mortos-vivos assim como ele. Depois de Teztal, reviverei
também o lendário dragão Ashardalon e ele também me servirá incondicionalmente.
Depois virão outros, e com o poder deles finalmente poderei destruir a Aliança
Negra, a Tormenta e até os Deuses! Ninguém será páreo para mim!
Os heróis se
enfureciam cada vez mais. Escalavam as cordas fixadas nos andares acima pelos
cavaleiros da luz, impossibilitados de usar seus poderes mágicos para voarem
devido à armadilha criada por Zulil. Acima deles, agora a apenas um andar de
distância, o necromante gargalhava insanamente.
_ Bem, acho que já chega de conversar. Preciso me
preparar para criar meu segundo escravo perfeito. Preciso ir buscar alguns
componentes, já que gastei tudo o que tinha criando meu primeiro soldado.
Eh...Guncha, abra o portal! – ordenou Zulil. Guncha correu até uma bancada e apanhou
alguns pergaminhos, abriu um deles e murmurou o feitiço inscrito no papel,
abrindo um portal mágico. Além dele, havia apenas uma imensa floresta. Gulthias
encarava Zulil à distância com ar reprovador. Maeka, Yupan e os outros genasis
pareciam surpresos com tudo aquilo. Guncha, surpreendentemente, seguia todas as
ordens de Zulil sem questioná-las e Teztal continuava a observar tudo
estoicamente. E não havia sinal de Laurel.
_ Não se esqueça das jóias! Elas são meus troféus – continuou Zulil. – Tenho que partir, meus odiados inimigos. Mas
não se preocupem, vou deixá-los em boa companhia. Meu novo escravo se
encarregará de dar um fim em
vocês. E , quando eu retornar, terei prazer em torná-los parte
de meu exército de mortos-vivos. Teztal! Eu ordeno que você destrua todos eles!
_ Espere, covarde! Enfrente-nos, maldito – desafiou Anix. Sua
bravata foi seguida de outras provocações de seus amigos.
_ Ora, não sejam idiotas! Eu não tenho tempo a perder com
vermes como vocês! Não vou me rebaixar ao nível de vocês. Para matá-los, basta
apenas um de meus escravos. Teztal fará com que sofram. Apenas meu novo escravo
é suficiente para...Argh!
O discurso de Zulil
foi interrompido por um grito sufocado de agonia e dor. Um fiapo de sangue
escorreu pelo canto de sua boca, enquanto seu peito se remexia com se tivesse
vontade própria. Todos assistiam aterrorizados ao que acontecia e ficaram ainda
mais espantados quando o peito do elfo explodiu diante de seus olhos. De dentro
do tórax ensangüentado surgiu uma mão segurando o frágil coração do mago. Era
uma mão prateada.
Zulil cambaleou para
frente, em direção ao centro do piso invisível, virou-se e olhou para Teztal, que
segurava seu coração. O elfo tentou balbuciar algo, mas seu corpo tombou sem
vida antes de completar sequer uma palavra.
_ Chega desta conversa irritante! – rugiu Teztal,
esmagando o coração em sua mão e atirando-o ao chão com desprezo. – Como este verme ousa me chamar de escravo?
Eu sou o grande Teztal!
Teztal limpou da mão
o sangue élfico. Estava visivelmente enojado com aquilo. Guncha sorria
satisfeita. Maeka, Yupan e os outros genasis também sorriam, mas de forma
diferente da mulher dourada. Gulthias apenas observava calado.
_ Maeka, Yupan, Guncha, venham! É hora de reconstruir meu
império. Este portal servirá, vamos embora. Guncha traga estas gemas, elas
servirão para a construção de um novo zigurate e de um novo colosso.
_ Teztal! Desgraçado! Você não vai fugir! – gritou Nailo.
_ Ah! Vocês ainda estão ai? Acertarei minhas contas com
vocês mais tarde. Agora tenho coisas mais importantes a fazer. Depois disso
irei caçá-los e fazê-los pagar por tudo que me fizeram. Especialmente você,
Yczar – o
olhar de Teztal se voltou para o paladino, repleto de ódio. Depois o genasi
virou as costas e atravessou o portal mágico e desapareceu. Os outros genasis o
seguiram com devoção. Por fim foi a vez de Guncha partir levando consigo as
jóias onde estavam aprisionadas as almas das pessoas que os heróis mais amavam
no mundo. Antes, porém, ela revelou-lhes algo surpreendente.
_ Não se preocupem com o imprestável do Zulil – disse ela com uma
voz masculina e estranhamente familiar. –
Desta vez ele não retornará mais. Não há mais clones. Eu destruí pessoalmente o
último que ele tinha.
_ Espere, como assim? Por quê? – perguntaram os
heróis confusos.
_ Ora, porque a traição é a maior dádiva dos Deuses! - respondeu a mulher,
sorrindo maliciosamente e exibindo uma longa língua bifurcada. O rosto dela se
transfigurou a assumiu uma forma que todos já conheciam. Era Laurel. – Adeus meus amigos!
O elfo voltou a transformar-se na genasi de
ouro e desapareceu além do portal mágico. A passagem se fechou em seguida e
fez-se um longo silêncio.
_ Bem, parece que agora somos somente nós – Gulthias tomou a
palavra quebrando o silêncio. – Agora que
os hóspedes se formam, podemos conversar à vontade.
Os heróis se
entreolhavam, intrigados com a aparente calma do vampiro após ter sido
abandonado pelos genasis. Como se lê-se os pensamentos cheios de dúvidas dos
heróis, ele prosseguiu.
_ Como vocês podem bem sabem, vocês invadiram meus
domínios, profanaram o templo sagrado de Ashardalon, destruíram muitos de meus
servos e roubaram meus tesouros. Isso é motivo mais que suficiente para eu
odiá-los e desejar por um fim à sua existência, mas, eu sou uma pessoa sensata,
sábia e muito benevolente. Por isso, tenho uma proposta a lhes fazer.
O vampiro sorria
sinicamente. Os heróis estavam ainda mais confusos. O que queria aquela criatura
das trevas? Eles não estavam ali para negociar, mas sim para destruí-lo e
retomar aquilo que lhes fora tirado, e que agora novamente se distanciava deles.
Antes que pudessem tomar qualquer atitude, o vampiro continuou.
_ Vou lhes dar duas opções, meus visitantes. A primeira é
muito simples, vocês irão embora em segurança e nós esqueceremos tudo que se
passou aqui. Porém, para isso devem deixar para trás tudo aquilo que saquearam
da torre, e também devem deixar suas armas e posses, como tributo para pagar
pelo que destruíram. Desta forma ficaríamos quites – o vampiro deu uma
pausa, embora não precisasse retomar fôlego, já que há muito não respirava. Um
burburinho começou nos andares abaixo, onde os aventureiros se encontravam.
Gulthias prosseguiu, calando a todos. – E
a segunda opção é a seguinte. Unam-se a mim. Como disse, sou um homem sábio. Eu
testemunhei a capacidade de vocês ao derrotarem meus servos. Grandes são seus
poderes, mas poderiam ser ainda maiores. Basta que vocês me tomem como mestre.
Eu lhes darei a imortalidade e suas capacidades aumentarão e chegarão a limites
nunca antes sonhados por vocês. Juntem-se a mim, tornem-se seguidores do nosso
deus, o magnífico Ashardalon e juntos construiremos um exército invencível.
Conquistaremos o mundo, caçaremos aqueles impuros que me traíram e os
destruiremos. Notei que vocês os odeiam tanto quanto eu. Juntos teremos nossa
vingança. Aliem-se a mim!
_ Nós escolhemos a terceira opção, vampiro – vociferou Yczar, encoleirado.
– Vamos destruí-lo, criatura das trevas! Jamais
nos aliaríamos a você ou partiríamos daqui deixando-o impune por seus crimes! Nós
vamos destruí-lo!
_ Entendo...É uma pena – suspirou o vampiro. – Então, neste caso, terei que matá-los! Ao
menos isto me divertirá!
Os heróis avançaram
torre acima. Nas costas de Galanodel, Orion golpeava as paredes de vidro mágico
com sua espada maligna até quebrar cada uma delas e destruir os olhos de
observadores e todo o ritual realizado por Zulil para impedi-los de usarem suas
magias.
No andar de cima, Gulthias
flutuava acima do piso invisível, calmo e absorto em seus próprios pensamentos.
Sem que os heróis desconfiassem, o vampiro conjurava uma série de poderosos
feitiços para proteger seu corpo dos ataques inimigos. Quanto terminou sua
preparação, o morto-vivo se ergueu e dissipou a barreira mágica com um simples
gesto. O corpo de Zulil
despencou silenciosamente e se espatifou no solo.
_ Venham – provocou ele. – E sintam a agonia da morte!
>>> Próximo episódio: O coração negro sob a montanha
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