fevereiro 27, 2015

Capítulo 2 – Toph Magaira

_ Quem é você menina? O que faz aqui? Por que me espionava? – inquiriu o homem com seriedade. Sua mão desceu suavemente até o arco longo que estava ao seu lado enquanto se levantava. Puxou uma flecha da aljava, carregou o arco. – Vamos, responda menina! – ordenou. Apontou o arco para a floresta. – E vocês também! Saiam e apresentem-se!
_ Eu me chamo Magaira – respondeu a menina, espantada com a agressividade do homem. ­– Eu vim por causa do cheiro. Que fome! O que você está assando?
_ Ora, se é fome o que você tem, então aproxime-se e sirva-se. São cogumelos, tenho muitos deles. Quer que eu a ajude? – o homem mantinha os olhos fixos na mata enquanto falava.
_ Ajuda? Pra quê? – perguntou a garota.
_ Ajuda para chegar até a fogueira, para não tropeçar. Há pedras e galhos por todo o lado – respondeu, deixando claro que notara a deficiência de Magaira.
A menina ficou irritada, mas não disse qualquer coisa sobre o assunto. Recusou a ajuda de forma rude e sentou-se próxima ao fogo. Apanhou com destreza um espeto de cogumelos e o saboreou, evidenciando que não precisava de auxílio. Aquilo a irritava. Por todo lugar onde ia as pessoas tinham reação semelhante, consideravam-na incapaz pelo fato de seus olhos não enxergarem. Seus olhos de fato não viam nada além de uma escuridão infinita, mas ela enxergava, e muito bem. Enquanto mordiscava o fungo com apetite voraz, sua mente trabalhava, trazendo à tona diversas lembranças.
Seu nome era Toph Magaira. Era de Bielefeld, de uma província próxima ao Bosque de Fiz Grim, chamada Kazordoon. Sua família tinha grandes posses, vinha de uma linhagem de combatentes que se auto denominavam “Punhos de Aço”, pelo fato de treinarem técnicas de combate sem armas. Não conheceu sua mão, morta durante o seu parto, e seu pai, Durin Magaira, governava o feudo com disciplina invejável. Era um homem de grande influência, tanto dentro quanto fora de sua cidade, entretanto não era um bom pai.
O viúvo culpava a filha pela morte de sua amada esposa, Elise e por esse motivo amaldiçoou a menina logo que nasceu. Enlouquecido pela perda, embalsamou o corpo da falecida e durante os quatro primeiros anos de vida da sua herdeira, fazia questão de levá-la todos os dias até o ataúde para ver o que causara à mãe. Parecia ter prazer em fazer torturar a filha, acusando-a de ser a causa do falecimento de Elise. Os empregados nada faziam, com medo das possíveis punições, já que Durin era extremamente severo e sua saúde mental já não era mais a mesma.
Mas, tanta crueldade não poderia passar impune. Certa vez uma das empregadas não se conteve e acabou por discutir com o patrão na frente de todos:
_ O senhor roga tanta praga nessa menina, obrigando-a a ver o corpo da mãe, que um dia, ela há de perder a visão de tanto desgosto e culpa!
Enfurecido, Durin mandou executar a mulher diante dos demais serviçais, para que servisse de exemplo a todos. Mas, como castigo por seus atos, ou talvez as palavras da mulher simplesmente estivessem certas, Toph foi perdendo a visão pouco a pouco, até que próxima de completar seu quinto ano de existência ela ficou completamente cega. Foi só então que Durin passou a se importar com a filha, mas não da maneira que ela necessitava. Colocou os criados para cuidarem da garota vinte e quatro horas por dia. Toph tinha quase um batalhão de serviçais para ajudarem-na a fazer tudo, desde as mais simples tarefas às mais complicadas. Mas seu pai quase não a via, passava a maior parte do tempo cuidando da administração da cidade – não tinha tempo para cuidar de uma menina cega, para ele já bastava a perda que tivera, aquilo era praticamente um insulto dos deuses.
Assim o tempo foi passando e Toph foi crescendo, criada pelas empregadas. E ao contrário do que seu pai supunha, não era uma incapaz ou um fardo. Ela era uma garota inteligente, que aprendia com facilidade mesmo as coisas mais complexas. E foi assim que ela começou a desenvolver suas habilidades.
A cidade de Kazordoon, vez ou outra, organizava torneios de combate corporal entre os populares para o deleite de seu suserano e a nobreza de cidades próximas.
Esses combates consistiam em dois lutadores, e o vencedor levava para casa um saco com uma quantia generosa de dinheiro e um cinturão de melhor lutador além, é claro, da fama entre a população. Toph, ainda pequena e com sua visão já extremamente limitada, chegou ver alguns desses combates e ficou fascinada com a maestria que os combatentes aplicavam seus golpes e com a movimentação. Era uma verdadeira dança acrobática. A jovem quis aprender mas seu pai, arrogante como sempre e ainda mais por ela ser uma mulher, prontamente a impediu de tentar praticar qualquer tipo de arte marcial, principalmente depois que ela perdeu a visão. “Como seria possível uma cega tentar entrar em combate com alguém?” disse Durin certa vez. Toph não suportava o fato de ser uma “impotente“ por causa de sua deficiência e tomou uma decisão que mudou sua vida. Jamais se daria por vencida. Ela ensaiava escondida os passos que havia visto quando ainda era bem pequena, ainda que fossem poucos, mas se esforçava como uma profissional.
Um dia, a faxineira da família entrou no quarto de Toph e a viu fazendo os movimentos e, reconhecendo o empenho da garota, resolveu ajudar, ainda que aquilo pudesse lhe custar a vida. A jovem treinava todos os dias com afinco e durante 5 anos essa rotina se repetiu.
Um dia, entretanto, sua vida sofreu uma reviravolta inesperada. Seu pai a levou em uma viagem até a capital, para que conhecesse o futuro esposo, a quem havia sido prometida por conveniência entre as famílias nobres. Durante a viagem, porém, a caravana sofreu um grave acidente. A carruagem em que Toph estava despencou em um penhasco, mas ela sobreviveu milagrosamente. No entanto não ouvia vozes procurando por ela. Supôs que tinham-na abandonado, afinal era impossível para alguém sobreviver àquela queda, especialmente uma menina cega. Caminhou durante horas a esmo, tentando aos poucos compreender o lugar onde estava apenas com sua audição e olfato. Já exausta se deu conta que já era noite, pois as criaturas noturnas já se faziam presentes. Recostou-se em algo que imaginava ser uma árvore e ali adormeceu. Acordou ouvindo passos e, obviamente, se assustou. Perguntou se era o pai que estava ali e não obteve resposta. Ainda assustada, a garota tentou levantar-se e correr, mas percebeu que era impossível fugir, pois havia uma espécie de círculo de rochas cercando-a. Era algo que não estava ali antes e que surgira do nada como num passe de mágica. Então, alguém se pronunciou:
_ Muito bem, garota – uma voz doce e lírica ecoou por aquela imensidão escura na qual a jovem se encontrava. – Fique calma, pequenina, não desejo lhe fazer qualquer mal. Venha, vou abrir o caminho para você vir até aqui e me dizer o que faz neste lugar.
Toph sentia uma estranha sensação de conforto ao ouvir aquela voz. Sentiu o chão ao redor estremecer e notou que a muralha de rocha que a cercava havia desaparecido. Sentindo-se segura, contou à voz o que lhe acontecera. A voz perguntou sobre seus olhos e Toph lhe contou sua triste história.
Comovida, a voz que por fim revelou chamar-se Inana, prometeu ajudá-la de alguma forma. Contou que seu papel ali era proteger todos que tentassem profanar a floresta próxima dali e tudo que nela habitava. Disse também que tinha vindo de um lugar muito distante, a pedido da própria Deusa da Magia. Revelou também que, a Deusa havia lhe do privado o direito de ver, enquanto estivesse naquele mundo, já que Inana tinha um coração completamente puro e para poupá-la dos horrores que poderiam parti-lo em pedaços. Assim, ambas possuíam algo em comum. Mas, ao contrário da garotinha, Inana conseguia sentir tudo o que estava em sua volta apenas com o toque de seus pés no chão. Era possível sentir o simples caminhar de uma formiga em uma distância de 20 metros dela. Além disso, ela possuía o poder de manipular a energia que a Deusa deixara no mundo, usando-a a seu favor dela para moldar a terra, as rochas e proteger a si mesma e o lugar que guardava. Assim, Toph encontrou uma mestra e começou um árduo treinamento. Sentia algo maternal em Inana, algo que não sentia com os criados que a educavam e nem mesmo com seu próprio pai.
Mas um dia toda a harmonia da qual desfrutava naquele lugar teve que acabar. Sentiu que as criaturas estavam muito agitadas e logo descobriu o motivo: seu pai, depois de longos dois anos, finalmente fora atrás do seu paradeiro. Um enorme grupo de busca ia avançando e devastando a floresta que ela agora chamava de casa. Destruíram toda a beleza do lugar e mataram criaturas inocentes e dóceis apenas para encontrar a menina perdida. Inana não suportou tudo aquilo e enlouqueceu, tentando a todo custo proteger aquele lugar com sua vida e força, mas acabou sendo capturada. Toph tentou libertar sua mentora e protetora em vão. Foi levada de volta até a província de Kazordoon e lá a Inana foi executada.
Toph sentiu no coração a mesma dor de um filho perdendo sua mãe e, tinha certeza, que o que fora feito com aquela criatura, fora algo desumano. Mesmo ser enxergar, sabia que a morte dela fora horrível, já que agora conseguia sentir o mundo a sua volta e todas suas vibrações. Toph ficou desolada e passou 1 ano trancafiada em seus aposentos, apenas saindo para fazer suas necessidades.
A garota sempre lembrava de Inana e as lembranças eram ainda mais fortes quando a chuva caia, já que ela tinha medo de trovões e Inana sempre a confortava em seus braços a cada tempestade. Prometeu a si mesma que iria reencontrar Inana em outro mundo ou até mesmo revivê-la com magia. Então, quando suas lágrimas haviam secado, Toph juntou alguns pertences e partiu. Iria conhecer o mundo e aprimorar o que aprendera com Inana. Também desenvolveria as técnicas de combate que conhecera e nunca mais permitiria que uma injustiça como a cometida com Inana se repetisse. E jamais deixaria que a destratassem por causa de sua cegueira, seria tão forte quanto ou até mais forte que qualquer pessoa “normal”.
Toph não tinha sequer quinze anos quando deixou seu “lar”. Levava em seu rosto um sorriso, em seus olhos as lágrimas e em seu coração o desejo de acabar com as crueldades de seu pai, rever Inana e construir um novo lugar para que as duas pudessem viver juntas e ensinar a outras pessoas tudo o que tinha aprendido sobre a vida nestes poucos anos de existência.
Assim o tempo passou e a menina cresceu e se desenvolveu ainda mais.  Certa vez, entretanto, Toph estava acampada em uma floresta, junto de uma caravana de mercadores que rumavam para o reino de Tollon, levando víveres e esperando obter madeira negra para comércio.
Era uma noite fria e o vento feria seu rosto enquanto ela praticava suas artes um pouco afastada do acampamento. Foi quando um som ensurdecedor invadiu sua mente. Era como o som de uma trombeta ecoando de forma estrondosa, não natural. Era algo sobrenatural, pensou Toph, pois ela, mesmo com sua audição apurada, não conseguiu determinar a fonte do barulho. Era como se ele surgisse de todos os lugares e nenhum ao mesmo tempo. Não houve deslocamento de ar, nada que pudesse produzir tal ruído. Era como se as trombetas tocassem diretamente em sua mente. Toph se assustou pela primeira vez em muito tempo.
Retornou ao acampamento e sentiu o desespero que tomava conta dos viajantes. As respirações ofegantes, choros suprimidos, gritos engolidos a seco, todos estes sons e sensações vinham até Toph. Ela soube então que não era coisa da sua mente, mas que todos tinham tido a mesma experiência desagradável.
Então o improvável aconteceu. Um sentimento de nostalgia se apossou de Toph. Uma saudade e uma preocupação com sua família. Toph lembrou-se de seu pai, e desejou vê-lo, ainda que não guardasse em sua mente qualquer boa lembrança daquele homem. Lembrou-se das poucas pessoas que a tratavam com algum carinho em sua casa, os criados de seu pai, e seu coração ficou aflito.
Toph abandonou a caravana e rumou de volta para sua casa. Foi longa sua jornada de volta já que transpor tantas léguas era uma árdua tarefa, especialmente para uma garota cega que viajava sozinha.
Faltavam poucas milhas para Toph chegar finalmente em casa, quando algo estranho aconteceu. Toph ouviu uma voz, estranhamente familiar que, a exemplo da misteriosa trombeta de meses atrás, parecia falar diretamente dentro de sua mente. A voz era fraca e distante e se expressava entre pausas, como se fizesse grande esforço para se pronunciar. A voz disse uma única frase:
_ Apresse-se! Antes que seja tarde, Toph!
Sem hesitar, Toph pediu ao homem que lhe dera carona dias atrás, um anão vendedor de armas, que acelerasse a marcha. Sem compreender, mas sem questionar, o anão chicoteou os cavalos dobrando a velocidade.
Toph finalmente chegou em sua vila. Mas já era tarde. O vilarejo estava em chamas! Toph podia ouvir os gritos e lamentos em meio ao som crepitante das chamas. Ouvia o desabar das casas, sentia a poeira e as cinzas que eram trazidas pelo vento morno. Toph entrou em um estado de semi-choque. Ela caminhou por entre as ruas flamejantes sem temer. Sentia as pessoas desesperadas, tomadas pelas chamas se debatendo ao seu redor. Sentia suas vidas sendo consumidas pelo fogo até cessarem completamente num grito sufocado de desespero. Desespero sem dor. Toph ficou espantada após passar pelo quarto moribundo. Seus corpos em chamas não emitiam calor, seus gritos eram de medo, não de dor. Toph, correu até sua casa, tomando cuidado para evitar as chamas, mas era tarde. A porta de entrada havia sido consumida pelo fogo e nela Toph sentia uma temperatura mais elevada. Já na entrada topou com uma criada em prantos.
_ Senhorita Toph...fuja... – soluçava a mulher.
_ Onde está meu pai? – perguntou a menina.
A mulher não pode responder, já que sua voz era abafada, como se algo tapasse sua boca. Toph sentiu apenas um leve deslocamento de ar, como se a empregada movesse um membro. O crepitar do fogo extinguiu-se junto com a vida da mulher. Toph tocou seu corpo com pesar. Estava frio. Era como se a mulher, ao invés de cinzas, tivesse se transformado em pedra. Um corpo de pedra fria e porosa.
Toph usou seu tato e notou que a criada apontava para um lugar, o quarto onde repousava o corpo de sua falecida mãe. Toph correu em direção ao aposento e lá encontrou seu pai.
_ Toph, minha filha...eles...eles... a levaram – balbuciava o homem, com dificuldade. Toph sentia ao seu redor o crepitar sobrenatural daquelas chamas sombrias que não emitiam calor. Ela estendeu o braço e o levou em direção ao altar onde sua finada mãe repousava. Não encontrou nada a não ser uma plataforma de pedra vazia. Os olhos cegos de Toph se encheram de lágrimas.
_ Quem fez isso? – perguntou ela entre um soluço e outro.
_ Monstros...hobgoblins... – respondeu Durin, também em pranto. – E havia um outro...enorme...parecia um javali...andava em duas pernas e usava armadura. Ha...via um...símbolo no peito...uma rosa vermelha rodeada de cristais de gelo.
_ Vou matá-los! – rugiu a menina. – Vou caçar um por um e fazê-los pagar – disse entre dentes.
_ Espere... – sussurrou o homem. Sua voz ficava mais e mais fraca. Toph ouviu o seu braço se mexer. Junto com o som dos músculos, ouviu um ruído de pedras atritando e se partindo. – Quero que fique com isto. Perten...ceu à sua...mãe. Está escondid...gaveta....secre...
A voz do homem cessou junto com sua miserável vida. O som das chamas sombrias também havia se extinguido. Toph tateou até encontrar o braço petrificado de seu pai. Seguiu a direção apontada por ele e vasculhou com as mãos o altar de sua mãe. O som de seus dedos deslizando sobre a pedra ficou diferente, revelando um espaço oco. Toph pressionou e ouviu um ruído como o de uma trava sendo desfeita. Puxou para fora uma gaveta oculta e lá dentro encontrou uma pequena caixa metálica. Toph abriu o recipiente frio e em seu interior encontrou um anel adornado. Era um fino aro de metal torcido e trançado. Sobre sua borda exterior havia uma pequena pedra multifacetada encrustada.
A garota deixou a casa e foi em direção à saída da vila. Os gritos e o som das chamas gélidas cessavam completamente. As vidas dos moradores cessavam e seus corpos tornavam-se frios e vazios como pedra.
_ Sinta... – novamente a voz que ouvira na estrada veio até Toph. E ela sentiu. A cada grito que cessava, a cada voz que se extinguia, Toph podia sentir algo como uma brisa, um sussurro, se deslocando para uma determinada direção, como que atraídos, todos convergindo para um único ponto. E, Toph sabia para onde iam: para algum lugar próximo ao reino de Tollon, onde estivera meses atrás. Ela agora tinha um rumo a perseguir.
Na borda de Kazordoon ela encontrou Hordof, o anão que a trouxera até ali. Ele a aguardava. Viu o anel em sua mão e disse tratar-se de um anel de noivado. Mais que isto. Para ajudar a garota, prometeu leva-la até seu destino em sua carroça.
_ Já que você vai até Tollon, irei acompanha-la até lá. Poderei conseguir algumas daquelas armas mágicas de madeira e fazer bom lucro com elas. Mas não irei interferir em sua jornada, menina. Apenas lhe darei uma carona – disse o anão.
Era o dia 27 Wynn de 1400. Assim Toph se despediu de sua antiga vida e das pessoas de sua infância e iniciou sua jornada, seria uma jornada de sangue. Meses depois, estava finalmente de volta a Tollon, perto do ponto para onde os sussurros das vidas dos aldeões convergiam. Em sua viagem sentiu diversas outras vezes o fluxo de energia convergindo para o mesmo ponto, mas vindo de direções diferentes. Hordof dormia na carroça quando Toph foi atraída pelo som de uma flauta ecoando pela floresta de madeira negra. Seguindo o som, Toph se aproximou de um acampamento. O som das chamas crepitando e o aroma de comida encheu sua boca d’água e ela seguiu o cheiro instintivamente.
Toph retornou de seu devaneio nostálgico. Ao seu lado, o homem continuava em pé, com o arco retesado, pronto para disparar.
_ Vou pedir apenas mais uma vez – ameaçou ele. – Apresentem-se! – puxou ainda mais a corda.
_ Espere! Não atire! Sou Theon Leejer, clérigo de Khalmyr! Não vim aqui lhe fazer mal – uma voz veio da mata escura, seguida de um humano jovem e de rosto belo e perfeitamente barbeado. Vestia uma armadura metálica em cujo peito o símbolo sagrado do Deus da Justiça reluzia sob a luz das chamas. – Estou numa missão sagrada e da mesma maneira que a menina, fui atraído pelo som de sua flauta e pelo cheiro de comida.
_ Então sirva-se, clérigo da Justiça! Será um prazer dividir a fogueira com você! Respondeu o dono do acampamento, acenando com o arco para que o jovem se sentasse.
_ Só tem um pequeno problema, senhor – Disse Toph. – Não tem mais cogumelo. Eu comi tudo. Estava gostoso demais – lamentou.
_ Ora, não se preocupe, Magaira. Isso não é problema. Theon, há muitos cogumelos naquele saco ali. Pode assá-los e comer à vontade.
_ Oh! Muito obrigado ! – agradeceu o clérigo enquanto abria o saco e espetava fungos nos espetos de madeira. – E o seu nome, qual é?

_ Eu sou Mavastus! E vocês, já disse para se saírem de seus esconderijos! – Mavastus disparou sua flecha.

fevereiro 26, 2015

Capítulo 1 - Cieri

O cavalo saltou a janela, estilhaçando seu vidro como se atravessasse o papel. O negrume de seus pelos mesclavam-se com a escuridão da noite sem lua. Suas chamas, azuis como as que ardiam na mansão atrás dele, inflamaram com voracidade enquanto o animal ganhava altura no céu noturno da cidade de Vallahim. Montada em seu lombo macio e quente, Cieri observava do alto a cidade diminuir à medida em que subia. Via os cidadãos, a maioria lenhadores simples e rústicos, correndo em direção ao prédio em chamas, atirando baldes de água, terra, abafando as labaredas com cobertas. Um ou outro tentava invadir o orfanato em busca de sobreviventes, mas o fogo azul os impedia. Em coro diversas pessoas gritavam quando apontavam para ela no alto: “Olhem, é Ônix, a ladra! Foi ela quem pôs fogo no orfanato! Ônix matou as crianças!”. Era um ultraje. Encolerada, Cieri conduziu Kurama rumo ao sul. Iria para longe dali, distante daqueles imbecis ignorantes. Como ousavam acusá-la de incendiar o orfanato? Absurdo! Sob a identidade de Ônix, a ladra, Cieri cometera diversos crimes, mas nunca matara. E seus furtos destinavam-se exclusivamente a custear o orfanato e a seu próprio sustento (e ao de seu companheiro equino). Enquanto voava pelos céus, agarrada ao pescoço de Kurama, flashes de memória brotavam sua mente. Lágrimas escapavam furtivamente de seus olhos díspares, ainda que ela não se desse conta disso, nem jamais admitisse tal fato.
Lembrava de sua infância. Ainda bebê, Cieri fora abandonada na porta do orfanato, em Vallahim, capital do reino de Tollon. Seria criada como órfã, em meio aos lenhadores que viviam da extração da valiosa e mágica madeira negra das árvores que davam nome ao reino. Dentro do cesto onde repousava a menina havia apenas um bilhete com seu nome e uma adaga de lâmina negra. Assim, Cieri Nocts Hesperus foi recolhida por Sindra, a administradora do orfanato, uma mulher simpática e ao mesmo tempo rígida e sistemática com seus pupilos. Ao pegar a criança, Sindra notara suas características incomuns. Seus olhos eram de cores diferentes, o direito tinha tonalidade roxa, enquanto o esquerdo era azul como o firmamento. “Seus pais viajaram muito antes de deixá-la aqui, pequenina” – pensou a mulher, compreendendo o que aquilo significava. A garotinha era oriunda de Collen, um reino insular a sudeste, cujos nativos – sem exceção – possuíam olhos de cores distintas (e, por vezes, com poderes mágicos). Os da garota, como se soube mais tarde, eram capazes de enxergar auras mágicas, se assim ela desejasse. Mas havia outra coisa que chamou a atenção da mulher: uma cauda. Cieri possuía um rabo esguio e preênsil que terminava em uma membrana pontuda, como uma ponta de flecha. Sindra empalideceu, pois aquilo só poderia significar uma coisa: sangue de demônio. Ou o pai ou a mãe da garotinha era uma criatura infernal, concedendo-lhe de herança aquela característica que a marcaria para sempre. A despeito de tudo isso, Sindra levou Cieri para dentro do orfanato que fundara e, junto com as demais cuidadoras e crianças, lhe deu todo o amor e carinho que uma criança merecia.
Anos se passaram e a menina foi crescendo. Era esperta e aprendia as coisas com extrema facilidade. Era ágil como um gato e curiosa como poucos. Divertia-se com seus “irmãos” todos os dias. Adorava pregar peças em todos. Aos poucos foi descobrindo seus poderes. Aprendeu a controlar as habilidades de seus olhos mágicos ainda com seis anos e encantava-se quando algum aventureiro passava pela cidade, carregado de itens mágicos brilhantes e coloridos. Talvez por sua herança abissal, descobriu que todo metal tocado por ela tornava-se preto. Essa sua habilidade era motivo de diversão entre as crianças, mas de preocupação para as zeladoras do abrigo que temiam que aquilo pudesse prejudicar a menina de alguma forma.
Foi aos dez anos que Cieri conheceu os ensinamentos da deusa Allihanna. Um homem apareceu no casarão, dizendo que estava se mudando para a cidade e pedindo permissão para ensinar às crianças as maravilhas da natureza. Trajava sempre roupas escuras e simples, nada além de um casaco e uma calça perfeitamente ajustados ao seu corpo e de um lenço vermelho que sempre trazia amarrado ao pescoço. Seu nome ninguém jamais soube, mas era chamado por todos de Senhor. Com ele Cieri aprendeu a lidar com plantas e animais, além de alguns pequenos truques mágicos.
Os anos continuaram se indo e foi então que as coisas começaram a ficar difíceis. O dinheiro começou a rarear ao passo que as crianças sem lar começavam a crescer em número – contribuição da Tormenta que se espalhava por mais e mais lugares. Arrojada como sempre, Cieri decidiu ajudar. Tentou emprego em todos os estabelecimentos da cidade, mas suas tentativas foram em vão. Nenhum comerciante ou artesão desejava ter em seu quadro de empregados uma pirralha sem lar e tão estranha quanto ela. Revoltada, não desistiu. Ajudaria o orfanato e se vingaria dos que a tinham desprezado. Passou a observar a rotina dos comerciantes, e se aproveitava dos seus momentos de distração para cometer seus furtos. No começo eram uma ou outra fruta, um pedaço de pão, um corte de tecido. Mas, com o tempo ela foi se especializando, mapeou a cidade e criou rotas de fugas. Ocultou suas feições sob um manto negro reluzente, que lhe rendeu a alcunha de Ônix. Todos os dias chegava no orfanato com uma boa quantia em dinheiro, dizendo que o tinha conseguido trabalhando.
O tempo passou, Cieri cresceu, a fama de Ônix também. Seus crimes também eram cada vez mais ousados. Recrutou alguns companheiros na cidade e criou sua própria guilda. Guardavam os espólios em um esconderijo na floresta, num lugar que descobrira durante as aulas a céu aberto do Senhor. Sentiu que era hora de se mudar, encontrar um lugar seguro onde não pusesse o orfanato em risco. Juntou dinheiro por um ano inteiro, fez uma grande doação ao orfanato e foi se despedir, dizendo que iria conhecer o mundo e ir em busca de seus pais. Sindra lhe entregou a adaga negra que lhe fazia companhia em seu cesto quando fora deixada no abrigo, dizendo que ela poderia ajudá-la em sua busca. Parou em uma taverna para comer algo antes de partir e assistiu à apresentação de um bardo talentoso. Cantava uma canção heroica, a Balada da Forja da Fúria, que falava de um lugar não muito distante dali, onde havia uma dragoa e muitos tesouros.
Impressionada com o relato, Cieri partiu rumo ao local descrito pelo bardo em busca de suas riquezas. Invadiu o lugar pela passagem oculta mencionada na narrativa e o encontrou desolado. Sem sinal de tesouros ou da dragoa. Vasculhou cada canto da gruta e encontrou o cadáver da fera no fundo do lago subterrâneo. Retirou escamas e dentes, pois sabia que eram valiosos e continuou sua busca. Encontrou uma pedra negra, lisa e elíptica e soube que encontrara algo de muito valor: era um ovo.
Cieri retornou a Vallahim com seus espólios. Pagou um bardo para cantar uma história fantasiosa nas tavernas da cidade, dizendo que tinha encontrado a famosa Ônix na estrada e que ela poupara sua vida em troca dele espalhar a todos o seu grande feito, o roubo do tesouro da dragoa. Procurou seu antigo mestre e lhe presenteou com o ovo (não queria ter um dragão chocando em seu colo, seria muito problemático). Para sua surpresa, Senhor já sabia de tudo o que tinha acontecido, inclusive sobre seu alter-ego. Aconselhou-a a ir em busca de seu passado, desta vez de verdade, e lhe disse que deveria, antes de tudo, saber quem realmente ela era, conhecer-se antes de conhecer sua história.
Assim, seguindo os conselhos de seu mestre, Cieri partiu numa jornada de autoconhecimento. Vagou pelos fartos bosques de Tollon, penetrando cada vez mais profundamente na mata escura até ser atacada por algo monstruoso. Uma criatura horrenda, que lembrava uma massa disforme de carne que vagamente lembrava uma figura humanoide com expressão de eterna agonia em sua face deformada, surgiu repentinamente e se arrastou em sua direção ameaçadoramente. Sem hesitar, a mulher sacou sua adaga negra e atacou o monstro com desespero. Conseguiu derrotá-lo com grande esforço e, exausta, desfaleceu ao lado da poça de carne e sangue fétido que se formara.
Não sabe quanto tempo permaneceu inconsciente, mas quando acordou, notou que estava em um lugar diferente. Era um campo florido que rodeava um gigantesco carvalho sob cuja sombra Cieri repousava. Diversos pirilampos voejavam ao redor dela, agitados. Ela cerrou os olhos e notou que tratavam-se de pequenas fadas. Pairaram todas diante de seus olhos brilhantes e uma delas, que se destacava pelo longo vestido prateado e pela coroa dourada em sua cabecinha, foi até ela.
Fez o que a fada mandou até porque se ficasse mais forte seria mais fácil viajar pelo mundo para descobrir seu passado. Rumou mais para o sul e começou a conviver com os espíritos da natureza. Aprendeu a ter paciência e começou a entender a sabedoria que a floresta possuía. Certa vez, enquanto descansava, foi dar uma volta pela mata e encontrou uma curiosa e bela criatura. Era um filhote de cavalo todo negro, altivo e imponente. No lugar de sua crina, chamas azuis cintilavam majestosamente, assim como na parte traseira de suas quatro patas. Os espíritos desejavam expulsá-lo, pois o consideravam um ser das trevas. Indignada, Cieri advertiu as entidades para que lembrassem de seus próprios ensinamentos e que tivessem compaixão com a criatura que nenhum mal causara a eles. Passou a cuidar e a proteger o animal e lhe deu o nome de Kurama. Com seu novo amigo ela conseguia percorrer grandes distâncias rapidamente já que, além de belo e misterioso, o equino era capaz de voar magicamente. Juntos passaram a explorar a floresta, indo cada vez mais distante do local em que se conheceram. Num desses passeios conheceu uma mulher que habitava uma gruta com um sátiro. Seu nome era Enola e fora escolhida pela própria deusa Allihanna para proteger aquele santuário. Seu amigo se chamava Silfo e era uma criatura extremamente simpática e amigável, dono de um coração mole e de mãos habilidosas nas artes de esculpir e costurar. Também era um talentoso músico e um amigo como poucos. Passou um ano junto a eles e aprendeu com Enola muitas outras coisas, completando o treinamento que iniciara com Senhor. Cieri, de ladra, tornou-se druida e passou a proteger a natureza e a compartilhar seus misteriosos poderes. Então chegou a hora de partir.
Junto com Kurama, Cieri seguiu para o norte, adentrando o território das Montanhas Uivantes. Passou longo período em meio ao gelo e à neve, conheceu algumas tribos que habitavam aquela região inóspita e muito aprendeu com eles. Quando já estava exausta daquele lugar friorento, decidiu que era hora de procurar um lugar um pouco mais quente.
Rumou para sudeste, até a magnífica cidade de Follen. Suas construções impressionaram-na, tudo era feito para estar em perfeita harmonia com a natureza. As casas eram construídas sobre as árvores, mesclando-se a elas sem que nenhum galho fosse derrubado. Pontes de corda interligavam todas as habitações e estabelecimentos, formando verdadeiras avenidas elevadas. Elevadores de madeira e corda transportavam as pessoas para cima e para baixo incessantemente. Cieri tomou um destes transportes e entrou na Estalagem Última Chance. Sentou-se a uma mesa no salão principal, observando o movimento local, vendo os fregueses que vinham apenas para uma refeição ou uma bebida e os que vinham para se instalar no lugar. Alugou um quarto e ficou alguns dias na cidade, conhecendo-a. Finalmente encontrou o homem chamado de Gurt. Apresentou-se e disse ter sido enviada por Saphiri. O homem se negou, a princípio, a ensinar Cieri. Mas, obstinada como era, a garota passou a segui-la e a imitá-lo. Após muita insistência, ele finalmente concordou em treiná-la. Gurt era um grande acrobata que utilizava suas habilidades para percorrer Follen sem dificuldades. Ensinou suas técnicas à sua nova aprendiz. Um ano se passou e a fama da ladra Ônix chegou à cidade suspensa. Cieri percebeu que Gurt começou a desconfiar dela, pois notara que o homem era extremamente perspicaz. Quando começou a fazer perguntas suspeitas repetidamente, ela decidiu que era a hora de novamente partir. Sem dar muitas explicações, despediu-se de seu mentor e se foi. Gurt deu adeus sem questionamentos, apenas exibia um sorriso arrogante, como se tivesse confirmado suas suspeitas.
A druida e seu cavalo deixaram a cidade nas árvores e foram rumo ao norte. Depois de muito viajarem, parando de vila em vila, conhecendo pessoas, lugares e costumes, chegaram às proximidades do lugar onde Cieri encontrara o ovo da dragoa. Era início de verão e o clima era ameno. Cieri observava o céu noturno, perto da montanha do Dente-de-Pedra, as estrelas brilhavam lindamente naquela noite. Então viu uma estrela cadente riscando o céu, produzindo um brilho intenso. A faísca cruzava uma zona desprovida de estrelas no céu, indo em direção ao norte quando se extinguiu. Segundos depois Cieri ouviu um som ensurdecedor, como o de um instrumento musical estridente e desafinado. Parecia vir de todo e nenhum lugar ao mesmo tempo. Cieri encolheu-se, espantada com aquilo, abraçando Kurama com força. Quando o ruído terminou, a floresta retornou ao silêncio e Cieri notou que tudo estava realmente quieto. Quieto até demais. Nenhum cricrilar, pio, ou coaxar podia ser ouvido. Era, sem dúvida um mau presságio.
Querendo respostas e temendo pelas vidas daqueles que lhes eram caros, Cieri montou em Kurama e partiu. Rumou ao norte, para o Bosque de Allihanna em busca de seus mentores. Chegou apressada à gruta onde treinara durante cerca de um ano. Entrou em disparada, esperando ver o rosto peludo e amigável de Silfo. Porém, não encontrou viva alma em seu interior. Silfo e Enola tinham partido. Deixaram a gruta e foram até o enorme carvalho, que era a morada de suas amigas fadas e as encontrou aflitas.
_ Uma tempestade se aproxima! – disse a rainha das pequenas criaturas feéricas. Como previra Cieri, Aquele som era realmente um mau presságio. A garota permaneceu com as fadas por vários dias esperando que seus amigos retornassem. Nem mesmo as fadas sabiam o paradeiro deles. O tempo passou e, como nem Silfo nem Enola retornavam, Cieri sentiu um forte desejo de retornar a Vallahim, e rever as crianças e cuidadoras do orfanato em que crescera. Despediu-se das sprites e partiu junto com Kurama. Em sua mochila levava uma recordação de seu amigo, Silfo, uma pequena boneca de pano, espetada de agulhas que o sátiro utilizava em suas criações.
A saudade apertava seu coração à medida em que avançava em direção à capital. Mas não era apenas a saudade que a deixava angustiada. Tinha, na verdade, um mau pressentimento. Acelerou sua marcha e já a poucas léguas da cidade seus temores mostraram-se certos. Uma estrela cadente riscou o céu negro na direção da cidade. O brilho foi seguido de gritos desesperados que ecoavam por milhas na escuridão.
Cieri correu em direção à cidade e a viu em chamas. Ao chegar mais perto, notou que uma parte da cidade ardia sob labaredas azuladas. Pessoas corriam desesperadamente de um lado para outro, tentando em vão extinguir as chamas. Cieri rumou para o orfanato e testemunhou com tristeza o local de sua infância tomado pelo fogo. Os gritos das crianças podiam ser ouvidos a quilômetros de distância. As pessoas observavam, impotentes, à tragédia que acontecia.
Sem hesitar, a órfã invadiu o lugar, num ato heroico. Assistiu com assombro ao que ocorria lá dentro. Dezenas de crianças tomadas pelo fogo gritavam e choravam. Cieri se aproximou da primeira, tentando extinguir as chamas com um cobertor, mas fracassou. O fogo tomou conta da manta como que magicamente, sem emitir qualquer calor. Algo estava muito errado ali. A criança caiu no chão, já sem forças e desfaleceu. As chamas foram desaparecendo lentamente, enquanto o pequeno corpo tornava-se cinzento. Porém, para maior espanto da garota, não era em um monte de cinzas em que a infante se transformava, mas sim em pedra. Uma pedra cinzenta, porosa e gélida.
Cieri percorreu todos os quartos e em cada um a cena se repetia. Na cozinha algo ainda mais estranho aconteceu. A fundadora do lugar, Sindra, era carregada por uma estranha criatura, uma espécie de javali bípede, pesadamente protegido por armadura. Cieri não sabia se a mulher estava viva ou morta, mas tentou impedir o raptor mesmo assim. Foi cercada pelas chamas, e nada pode fazer a não ser ver a besta deixar o orfanato.
Cieri protegeu seu corpo com seu manto e correu para a entrada, quando encontrou com seu companheiro, Kurama. O cavalo invadiu o orfanato, aflito, jogou a menina em seu lombo e num salto majestoso ganhou as ruas. Lá fora, a cidade se reunia, armados de ferramentas rurais tentando feri-los. Estava claro para Cieri. As pessoas simples e ignorantes de Vallahim a culpavam pela tragédia. Relacionavam o misterioso incêndio às chamas de Kurama. Cieri não teve outra opção senão correu por sua vida.
Cieri voltou a si já a várias léguas ao sul de seu antigo lar. Parou para que Kurama pudesse descansar e para que ela pudesse organizar seus pensamentos, tentar entender o que acontecera e decidir o que faria a seguir. Escondida na mata, ouviu o som de uma flauta não muito distante. Seguiu a melodia com cautela e parou a poucos metros de sua fonte, apreciando as notas por um breve instante. Foi quando o rugido de uma fera a despertou do torpor. Instintivamente ela se preparou para o combate iminente. Fitou com os olhos mágicos a claridade à frente e se deparou com uma clareira. No centro dela uma fogueira ardia, aprazível. Diante dela um homem soprava delicadamente uma flauta de bambu e ao seu lado um gigantesco tigre se erguia, atento, pronto para atacar. Cieri congelou ao ver o tamanho da criatura e ficou mais paralisada ainda quando o homem interrompeu sua música e disse em voz alta:

Cieri hesitava sobre o que fazer. Então viu com assombro uma garotinha de não mais que quinze anos entrar na clareira. Para seu maior espanto, notou que a menina era cega.

fevereiro 24, 2015

Um fim e um novo começo...

As Crônicas Artonianas estão de volta após uma nova e longa pausa. Durante anos alimentei este blog com carinho especial, carinho que nunca diminuiu, ao contrário do tempo do mestre. Muitas aventuras ainda foram vividas pela turma de Anix, Orion e companhia, após a chegada a Triumphus. Entretanto, infelizmente os jogadores cresceram, o poder subiu à cabeça e acabaram se transformando naquilo que mais odiavam: Digimons! Pisadas na bola consecutivas e cada vez piores me levaram a encerrar a campanha antes da história ter tido sua conclusão. O grupo foi desfeito, mas o desejo de jogar, mestrar e de continuar escrevendo nunca desapareceu.
Assim o tempo passou, uma nova tentativa foi feita com outro grupo, que também não deu certo (felizmente, agora reconheço). Então dei uma pausa geral e me afastei do escudo de mestre. O tempo passou mais uma vez, veio a 5ª edição do RPG Dungeons & Dragons, para a qual eu não dava a mínima bola (a horrível, em minha opinião, 4ª edição me afastou de vez do sistema, optando por ficar com o material que já possuía e por buscar um outro sistema que fosse tão completo e versátil, porém mais simples). Isso perdurou até que numa brincadeira de Facebook um amigo postou os seus 10 livros preferidos e entre eles estava o novo Livro do Jogador. Surpreso, contatei-o e perguntei se o jogo era assim tão bom. A resposta foi mais ou menos essa: “está f*da. É a melhor edição do jogo"! Bem, curioso e em busca de algo que substituísse minha tão amada 3.5, fui dar uma olhada na internet. Baixei o conteúdo pdf oficial e comecei a ler, ainda com desconfiança. Mas, para minha agradável surpresa, encontrei finalmente o que procurava. Devorei o starter set em 1 semana, comecei a comprar os livros pela Amazon e em menos de um mês começamos a jogar.
Desta vez um novo grupo foi formado, mantendo apenas um dos dois jogadores que ainda valiam a pena da turma antiga (Sim, o Anix continua, mas o Orion foi pra facul) e seguindo a premissa que levou à formação do grupo anterior e que rendeu 8 anos de bom rpg. Jogadores descontentes em outras mesas, outros que nenhuma ou poucas oportunidades tiveram de jogar uma campanha regular foram convidados. Estava formada uma nova turma de “excluídos”, jogadores marginalizados por outros grupos se juntaram para rolar dados e interpretar seus personagens.
O resultado? Bem sistema novo e muito bom, jogadores cansados de “mimimi” e dispostos a jogar, trouxeram de volta a mesma empolgação de quando os “(ex)Escolhidos” começaram suas aventuras. Hoje, praticamente 5 meses após a reunião inicial para criação dos personagens, o grupo está cada vez mais coeso e engajado. Novamente as cenas, situações e plots começam a surgir espontaneamente, tornando o jogo vivo, interessante, intrigante e divertido.
O grupo é novo, os personagens são novos, a história é nova, mas o cenário ainda é o mesmo. Continuamos a nos aventurar por Arton, a desbravar os mistérios nunca antes explorados pelo grupo antigo. E a cronologia foi mantida. Agora estamos 2 anos no futuro, após o grupo de Anix ter vencido o labirinto de Triumphus, a Pirâmide do Sol no Deserto da Perdição, o Torneio das Trevas em Sombria e ter recuperado algumas das jóias das almas. Enola já está liberta, após ter despertado poderes de meio-dríade, e vela os corpos das outras damas, enquanto seu marido continua a missão. Anix, Orion e seus companheiros continuam vivendo suas aventuras, mesmo que a campanha antiga não tenha mais suas sessões de jogo.
Agora o foco é em um novo grupo de heróis, que se conheceu involuntariamente e foi obrigado a se unir para combater um enorme mal. Um mal cujas proporções são gigantescas e que agora começam, aos poucos, a serem reveladas. Um mal que os próprios Deuses ignoram, já que no momento estão ocupados tentando consertar as cagadas de Legolas e companhia, tentando impedir que todos os selos sejam quebrados e a criação seja aniquilada. As aventuras do antigo grupo apareceção aos pedaços, a conta-gotas, à medida que os novos heróis forem tomando contato com elementos da campanha antiga e se envolvendo numa trama muito maior e universal. Crossovers ocorrerão ocasionalmente e a nova campanha interferirá na velha. Com a corrupção de Legolas, Squall, Nailo e etc., restou a Orion e Anix prosseguirem sozinhos com a missão de salvar as almas aprisionadas por Zulil.

Os novos heróis enfrentarão perigos ainda maiores que os seus antecessores e, espero, sairão vitoriosos onde os outros falharam. A nova jornada não será nem um pouco fácil, envolverá sacrifícios e definirá o destino de Arton. Será um caminho longo e penoso. Será uma Jornada de Sangue!

Ao final disso tudo, o mundo conhecido mudará radicalmente, Deuses cairão, heróis poderão ascender, dimensões entrarão em colapso e a verdade por trás do Destruidor de Mundos finalmente será revelada.

Desta vez, entretanto, a narrativa será diferente. Mais um relatório dos eventos do que um romance rebuscado, um material de consulta para mestre e jogadores. No futuro, quem sabe, eu não seja novamente capaz de dispender tempo para escrever em minúcias estas aventuras? O importante é que o show sempre deve continuar e é o que vem ocorrendo desde outubro de 2014 de forma surpreendentemente agradável.

Aos que lerem estes relatos mal e porcamente escritos, meu muito obrigado e sejam novamente bem vindos às Crônicas Artonianas, sejam bem vindos à Jornada de Sangue.