Theon Leejer, clérigo de Khalmyr, o Deus da Justiça, saboreava
os cogumelos assados com avidez. Temperava-os apenas com sal, o único
condimento disponível no improvisado acampamento do homem chamado Mavastus, que
continuava em pé, de prontidão, apontando seu arco para a floresta. O sabor não
era desagradável, pensou Theon, mas nem de longe lembrava a saborosa comida de
sua mãe ou as refeições no templo. Enquanto mastigava os fungos salgados, ia se
lembrando, com saudade, da comida de sua terra.
Theon não era um homem acostumado à vida na estrada, nem às
privações que ela impunha aos que nela se arriscavam. Filho de ricos
fazendeiros, era originário do reino de Sambúrdia, um local repleto de densas
florestas e fartas plantações, que lhe renderam o apelido de Celeiro de Arton.
Seus pais eram donos de uma vasta extensão de campos cultivados próximos à
capital do reino. Foi na cidade homônima ao reino que o jovem realizou seus
estudos e descobriu sua vocação. Desde muito cedo Theon foi enviado ao Grande
Templo da Justiça para estudar. Calmo e centrado, religioso e possuidor de uma
fé inabalável, Theon logo foi reconhecido como apto ao serviço de Khalmyr. Ele,
é claro, aceitou o convite para ingressar na ordem sem hesitar. Considerando-se
uma arma enviada pelo próprio Deus, Theon se dedicou aos estudos com afinco.
Frequentou os Centros de Treinamento e Estratégia, o quartel do exército local,
destacando-se na arte militar. Logo tornou-se o aluno favorito dos superiores,
despertando inveja por parte dos demais noviços (algo que não deveria acontecer
entre servos da Justiça). Dentre esses estava aquele que por anos foi seu
melhor amigo, Larsaa Tpish, sobrinho distante do famoso mago Vladslav Tpish.
Durante anos os dois conviveram como irmãos e rivais. Estudavam juntos,
treinavam cavalaria e combate juntos, cuidavam de suas obrigações clericais
juntos. Larsaa tentava sempre superar Theon em tudo que fizessem e vice-versa.
Porém, enquanto Theon encarava tudo como uma brincadeira e um incentivo para os
dois evoluírem juntos, e enquanto ele se alegrava a cada sucesso de seu amigo,
o mesmo não ocorria com Larsaa. Cada derrota para Theon era tomada como uma
ofensa, fazendo com que ele se sentisse humilhado. Larsaa não deixava nunca
isso transparecer, até o dia em que sua derrota foi total. Após concluírem todo
o treinamento do sacerdócio, Theon foi escolhido como cavaleiro, título que
Larsaa almejava mais que tudo. Ele havia treinado arduamente para conseguir tal
graça, passava noites em claro estudando, treinava até a exaustão na academia
militar, praticava rituais, cânticos e tudo mais que fosse relevante para um
cavaleiro sagrado. No entanto, seu rival fora escolhido para o cargo. Larsaa
sabia que já havia superado Theon em tudo, graças ao seu esforço intenso, no
entanto não fora agraciado com o título. Irritado, foi tirar satisfações com o sumo-sacerdote
do templo e a resposta o deixou ainda mais enfurecido:
_ É evidente que você é mais capacitado na equitação, na esgrima e na
estratégia. E seus conhecimentos, tanto religiosos quanto nas outras matérias,
suplanta de longe o de Theon. Mas nós o escolhemos por ser ele o que possui o
coração mais puro de todos. Enquanto você treinava apenas para conseguir o
título, ou seja, em busca de poder e glória própria, Theon apenas almejava
servir Khalmyr – explicou o clérigo. – Além
do mais, um dos anciões teve uma visão sobre aquele garoto. O título é dele por
direito.
Larsaa encheu-se de ódio. Ao invés de enxergar o próprio erro e
se corrigir, o rapaz afastou-se de vez da luz. Juntou suas coisas e,
interrompendo a festa de comemoração da promoção de Theon, ele o desafiou no
meio de todos. Jurou vingança e disse que se Khalmyr não reconhecia sua
capacidade, iria se aliar a outro deus. Assim ele jurou lealdade a Tenebra,
Deusa da Trevas, diante de todos os clérigos do templo, e partiu. Iria
percorrer o mundo em busca de poder para cumprir seu juramento.
Theon tinha apenas 16 anos nesta época e aquilo fora um choque
para ele. Perdera seu melhor amigo de uma forma talvez mais trágica que a
morte. Ele foi sagrado cavaleiro e uma
cerimônia foi realizada, numa tentativa de apagar o trágico episódio das mentes
de todos. Recebeu uma espada mágica como prêmio de consagração, uma arma que
condizia com a personalidade do garoto. Apesar de exímio na arte do combate,
Theon sempre tinha uma postura pacífica, evitando ao máximo qualquer combate.
De forma semelhante, sua arma podia rasgar a carne de quem se colocasse em seu
caminho, mas também possuía o poder de curar os ferimentos de quem
necessitasse.
Quatro anos se passaram e Theon, já um clérigo formado, começou
a sair em missões para sua igreja. Ele apreciava essas saídas do templo, eram
ótimas para ele pregar a palavra de seu Deus e ajudá-lo a fazer a justiça no
mundo. Também eram boas oportunidades para tentar encontrar alguma pista do
paradeiro de seu antigo amigo. A rotina era boa, com algumas viagens não
demoradas e com dias agradáveis passados no templo. Mas, como dizem, todas as
coisas acabam. E foi numa noite sem lua que os dias de conforto e paz de Theon
terminaram. Era o vigésimo nono dia de Altossol, o verão do ano de 1400 mal
iniciara. Retornava de uma missão, na qual ele e Marcus, um homem já grisalho
que clericava há mais de 30 anos, tinham conseguido exorcizar uma garota
possuída por um demônio. Marcus usara uma magia para banir o ser infernal e
selar o corpo da menina, impedindo que a criatura tentasse possuí-la novamente.
Theon ainda sorria, satisfeito com o dever cumprido, quando avistou o corre-corre
nas ruas da capital. Prestativos como todos os servos do Deus da Justiça são,
Theon e Marcus ofereceram ajuda e perguntaram o que acontecia. Foi quando
descobriram, para sua surpresa, que o Templo da Justiça estava em chamas.
Os dois sacerdotes correram para auxiliar na contenção do
incêndio. As labaredas já tinham engolido grande parte do complexo e os gritos
de desespero podiam ser ouvidos a quilômetros.
Os dois invadiram o templo, buscando os sobreviventes, e rumaram
em direção aos fundos do complexo. Passavam pelos corredores, vendo o fogo
devorar cada móvel, mas não se detinham ali, havia vidas a salvar, algo muito
mais importante que a mobília. Chegaram à nave do templo e lá avistaram Gurney,
o alto sacerdote, sendo subjugado por um poderoso inimigo. Era um enorme
hobgoblin, emoldurado numa couraça metálica reluzente brandindo uma espada. Em
seu peito a figura de uma rosa vermelha rodeada de cristais de gelo chamava sua
atenção. Seu cabelo era preso no topo da cabeça horrenda num rabo de cavalo que
descia até o meio das costas largas. As labaredas tomavam conta de quase todo o
salão, bloqueando o caminho dos dois até o combate. Gurney estava de joelhos no
chão, exausto e cheio de ferimentos. O fogo o envolvia, mas, estranhamente,
parecia não feri-lo. As chamas eram azuladas e não emitiam calor.
Sem hesitar, Marcus saltou à frente, transpondo as chamas de
espada em punho em socorro do reverendo. Porém, ao ser tocado pelo fogo, Marcus
desabou no solo, contorcendo-se em desespero. Aquele fogo maligno o envolvia e
avançava por seu corpo velozmente. Marcus tentava em vão extinguir as chamas,
até que seu corpo ficou imóvel e sem vida. Transformara-se numa estátua de
pedra cinzenta, fria e porosa, para horror de Theon.
Metros à frente, o hobgoblin terminara de cravar sua lâmina no
peito de Gurney. O clérigo tombou para trás, desfalecendo. Antes de tocar o
solo, foi apanhado pelo monstro num agarrão ligeiro. Theon fez menção de saltar
pelas labaredas sombrias, quando o hobgoblin o deteve:
_ Se quiser virar pedra
também, pode vir rapazinho! – provocou o monstro com sua voz rouca.
Theon deteve-se, seu olhar voltou-se na direção de Gurney que
abria os olhos num último suspiro.
_ Sua alma foi sugada
– disse com dificuldade, apontando para Marcus. – precisa libertá-laaaa...- completou gorgolejando. Gurney, num
último esforço, conseguiu sacar uma adaga no cinto do inimigo, cravando-a na
coxa direita do monstro. O sangue pútrido jorrou no chão sagrado e a besta
urrou enfurecida, enterrando a espada no rosto do clérigo. Sem dizer uma
palavra, o monstro arrancou o punhal da perna e o jogou no chão. Apanhou um
pergaminho em uma bolsa presa ao cinto, desenrolou-o e conjurou o feitiço que
nele havia. E desapareceu diante dos olhos de Theon, levando o corpo do
reverendo consigo.
Ainda em choque, Theon deixou o lugar e partiu em busca de
outros sobreviventes. Ninguém havia sobrado. Todos os sacerdotes e serviçais
que estavam presentes no incêndio tinham se transformado em estátuas de pedra
ao serem atingidos pelo fogo sombrio.
Ele estava inconformado. Precisava fazer alguma coisa, precisava
punir o monstro que fizera aquilo, precisava salvar as almas dos que tinham
virado pedra, precisava fazer a justiça de Khalmyr prevalecer. Mas não tinha
sequer uma pista, nada para começar sua busca. Então ele se lembrou. A adaga.
Theon correu para a nave da igreja assim que as chamas se
extinguiram e pegou a arma da criatura que matara seu mentor, todos os seus
amigos e, ironicamente, salvara sua vida. O punhal ensanguentado serviria.
Theon só precisaria conseguir ajuda de um clérigo mais experiente para realizar
seu plano.
Assim ele partiu, sem sequer se despedir de seus pais. Tinha
urgência em cumprir sua missão. Cavalgou ligeiro até Nova Ghondriann e foi até
o grande templo de Khalmyr próximo à capital, Yukadar. Lá um sacerdote
altamente graduado usou a adaga e o sangue do hobgoblin e orou ao Deus da
Justiça por um augúrio. E sete nomes foram revelados: Kazordoon, Khalifor,
Cavalo Branco, Thartann, Sordh, Vallahim, Rhond.
Theon pesquisou na biblioteca do templo onde ficava cada uma
daquelas cidades. Traçou uma rota e partiu em viagem. Iria por Zakharov, depois
para Deheon, Ahlen, Tollon, Lomatubar, Tyrondir e finalmente Bielefeld,
terminando sua jornada na cidade de Karzodoon. Faria as duas últimas viagens de
navio, para ganhar tempo e esperava encontrar seu inimigo em algum destes
lugares.
Em suas três primeiras paradas, Theon não encontrou nada que o
levasse até seu alvo. Ou ele não estivera ali, ou seus planos tinham se
alterado ao longo dos meses, ou a visão do sacerdote tinha sido equivocada,
algo em que ele não acreditara.
Theon se aproximava de sua quarta parada, a capital de Tollon,
Vallahin. Era a noite de dezenove de Luvitas e a lua novamente estava em treva.
Parara à beira da estrada para pernoitar, quando ouviu do outro lado da estrada
o som da música do tal Mavastus e agora desfrutava de sua comida. Os meses na
estrada, as privações que passara, fazia com que os cogumelos parecessem mais
deliciosos, mas as lembranças do tempo de paz que tivera antes de tudo aquilo
também os tornava mais amargos. Já tinha preparado diversos espetos e os
dividia com a garota cega. Mavastus disparara mais três flechas na escuridão.
Após um instante, um homem surgiu do breu à frente de Mavastus. Era esguio e
movia-se em completo silêncio. Vestia um manto verde que o camuflava na mata
escura, um capuz ocultava seu rosto. Fez uma saudação e se apresentou.
_ Sou Griel, filho de Thrundil!
– disse numa reverência - Venho em paz. Apenas fui atraído pelo som da
música e vim averiguar o que acontecia.
_ Comigo aconteceu o
mesmo! – disse outra voz. Um outro homem encapuzado. Movia-se como o
anterior, entrando na clareira por uma direção oposta ao outro. Trajava um
manto todo azul e por seu capuz escorriam algumas mechas de cabelo prateado, a
mesma cor de seus olhos. Os dois recém chegados ficaram se encarando por um
longo momento, quando o último se apresentou. – Meu nome é Celerin, muito prazer – disse. Sua voz era bela e
afinada, como a de um cantor. – Bela
música você entoava. Toca muito bem.
Do ponto para onde a terceira flecha foi, surgiu uma mulher. Era
alta e bela, cabelos longos e castanhos escuros, como seus olhos, emolduravam
um rosto fino. Trajava uma armadura, muito parecida com a de Theon, mas em seu
peito, no lugar da balança de forma de espada, símbolo do Deus da Justiça,
trazia a imagem de uma dama de joelhos, voltada para o céu numa súplica. Era
uma serva de Valkaria, a Deusa da Humanidade, da ambição e dos aventureiros.
_ Meu nome é Lisbeth –
disse a mulher. – Eu fui também atraída
pela música e pelo cheiro de comida. Estou com muita fome!
_ Mas que diabos! –
ralhou Mavastus. – Ou eu estou dando uma
festa e não fui avisado disso, ou há algo mais nisso tudo. Tantas pessoas
juntas assim no mesmo lugar não é algo normal. Afinal, o que vocês estão
fazendo por aqui. E vocês dois ai na mata, sei que estão ai. Por que não se
juntam a nós? – Mavastus deu um assovio e o gigantesco tigre saiu de uma
moita próxima e foi até ele. – Golias!
Convide-os! – o animal correu para a floresta e desapareceu. Pouco tempo
depois ouviram seu rosnado e da mata surgiu mais uma pessoa, acuada pelo grande
felino. Era grande e musculoso, um verdadeiro brutamontes. Quando se aproximou
da fogueira todos puderam ver seu rosto. Era um meio-orc.
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