Capítulo 290 – Batalha nas profundezas
Mergulharam. A água era fria e turva, enegrecida pela proximidade com a ilha e pela agitação das ondas. Partículas boiavam na água, dificultando a visão, a ausência do brilho de Azgher naquele dia chuvoso também contribuía para camuflar a inimiga no leito do Grande Oceano. Diversos animais marinhos rodeavam o casco do navio, alimentando-se de pequenos crustáceos que se prendiam à madeira. Nailo encontrou um peixe adequado e foi até ele, lentamente, tentando não espantá-lo. Conseguiu se aproximar o suficiente, pode até passar a mão no pequeno animal, mas preferiu não perder tempo e começou a falar.
Nailo conversava com um peixe prateado, favorecido pelo poder que Allihanna lhe concedera muitos dias atrás. O pequeno animal, apesar de entender o que o elfo dizia, estava mais preocupado em comer os pequenos caranguejos que caminhavam no casco do navio, chegou até a oferecer a Nailo uma porção de seu pequeno banquete.
Os demais olhavam espantados para a cena, sem entender o que acontecia. Enquanto esperavam, Legolas colocou dois brincos dentro de suas guelras, criadas pela magia dos pergaminhos de Deedlit, para ver o que aconteceria com eles quando o tempo de duração da magia terminasse.
Nailo a perguntar ao peixe sobre Silmara. Mas o animal, apesar de entender as palavras de Nailo, não era capaz de compreender muitos conceitos mencionados por ele, de modo que o elfo levou algum tempo para explicar ao animal quem era a bruxa que ele procurava. Mas, quando a pequena criatura finalmente entendeu do que o ranger falava, o medo tornou-se visível na expressão impassível do animal.
Por pouco o peixe não fugiu, apavorado, temendo que Nailo fosse devorá-lo, da mesma forma que a bruxa já havia feito com muitos dos seus iguais. Mas o elfo foi astuto ao oferecer comida, rações de viagem, ao peixe e conseguiu provar que não era amigo de Silmara, acalmando o animal. Em troca da comida, que o peixe devorava avidamente, Nailo pediu que o animal o avisasse, no fundo do mar, caso ele visse a bruxa em algum lugar. Assim Nailo firmou o pacto com a pequena criatura, colocando-a para comer em segurança em uma toca aberta com a lâmina de sua espada. Caso Silmara passasse perto daquele local, Nailo seria avisado. O peixe ainda os ajudou, apontando para qual direção Silmara tinha ido, momentos antes de os heróis mergulharem na água.
Então todos mergulharam seguindo a direção apontada pelo animal cada vez mais fundo, em busca da detestável adversária. Nadaram um longo tempo, sempre em direção ao fundo, quando finalmente avistaram, a cerca de trinta metros de onde estavam, os destroços daquilo que outrora fora uma admirável caravela.
O Trinidade jazia no leito oceânico aos pedaços. Rombos enormes em seu casco de madeira apodrecida, enormes algas que cresciam ao redor e sobre ele, denunciavam a enorme quantidade de tempo que a embarcação permanecera abandonada naquele local. O fundo do mar era pedregoso, recoberto de cascalho grosso e areia. Enormes algas cresciam ao redor do navio, dentro e sobre ele, criando uma pequena floresta subaquática. Um enorme paredão de pedra, a extensão submersa da pequena ilha do farol, cercava um dos flancos do Trinidade, para o qual estava voltado seu casco esburacado. Os mastros estavam partidos e podres, não havia qualquer sinal de suas velas, de tesouros, ou de sua antiga tripulação. O local era só desolação. Partículas em suspensão, bem como a escuridão, quebrada apenas pela luz fornecida pelo arco de Legolas, dificultavam a visão de todos. Ainda assim, Nailo foi capaz de enxergar uma caverna no paredão de rocha, para onde a bruxa pudesse talvez ter ido. E havia algo mais, que todos conseguiram ver, ainda que com dificuldade. Nadando próximo ao navio, como se o vigiasse ou esperasse por algo, um enorme selako cinzento se fazia presente e assustador. De súbito, o animal notou os heróis, ergueu seu corpo cartilaginoso, dobrou a cauda para tomar impulso, e os atacou.
O animal avançou velozmente pela água, e Nailo pode ver com detalhes seus olhos vermelhos, brilhantes como fogo, e as estranhas manchas negras que ornamentavam seu corpo musculoso.
Uma saraivada de flechas atingiu o animal. Cada uma deixava um rastro de água congelada ao se deslocar, formando uma fina barra de gelo que se quebrava em minúsculos pedaços assim que o alvo era atingido. O monstro continuou avançando com voracidade, embora os ataques de Legolas o tivessem debilitado. Abocanhou a perna de Anix, arrancando um naco de carne e espalhando uma cortina vermelha pela água. Dois outros monstros surgiram de dentro dos destroços do Trinidade, atacando com a mesma violência do anterior. Orion só não teve sua carne rasgada graças à suas armadura. Já Nailo não teve a mesma sorte, que o humano, sentindo na carne o quão afiadas eram as presas do monstro. Em meio ao combate que se iniciava, Nailo ouviu um voz vindo de dentro da embarcação naufragada, que entoava estranhas palavras num padrão constante e ritmado.
_ Esses selakos não são normais! Tem alguma coisa estranha neles, eles não são deste mundo! Tomem cuidado! E tem uma voz, alguém falando uma língua estranha dentro do navio! Deve ser a bruxa! – alertou Nailo.
_ Nailo tem razão, esses animais não são de nosso mundo, mas sim de algum outro plano de existência maligno! – completou Lucano.
_ Devem ser criaturas invocadas! – sugeriu Anix, sua voz era carregada de dor.
_ Impossível, se a bruxa está no navio, eles estão fora do alcance da magia dela, deveriam ter desaparecido, como acontecia com as criaturas que o Sairf invocava! – corrigiu o ranger.
Orion, que não desejava perder tempo conversando, tratou de golpear o monstro ferido por Legolas com sua espada. A lâmina abriu o corpo da criatura ao meio e o sangue jorrou farto, tingindo toda a água ao redor dele. Com um segundo golpe o guerreiro arrancou a nadadeira dorsal de outro selako, deixando-o quase à beira da morte. O animal abatido desapareceu diante de todos, como se tivesse sido transportado por mágica.
Então Nailo ouviu novamente a voz dentro dos destroços e avisou seus companheiros. Desta vez, surgiu um enorme crocodilo, também de olhos avermelhados e pele recoberta de manchas negras, que avançou na direção dos heróis.
Anix usou seu poder mágico, fazendo surgir uma espécie de rede sobre o crocodilo. O animal se enroscou nos fios pegajosos, e afundou, ficando preso no fundo do oceano. Com suas espadas Nailo eliminou os selakos restantes, fazendo-os também desapareceram, exatamente igual ao que acontecia com as criaturas que Sairf e Lucano invocavam para ajudar seu grupo.
Restava apenas o monstruoso réptil que lutava contra a armadilha de Anix no leito oceânico. Legolas avançou contra ele, disparando suas flechas e pousou sobre o casco do Trinidade. Squall acompanhou o arqueiro, e entrou por uma abertura no casco do navio, descendo em seu interior escuro. Legolas entrou logo atrás dele, usando seu arco para iluminar o ambiente. Os demais concentravam seus esforços em atacar o crocodilo. Orion e Nailo, com cortes precisos conseguiram destruir a criatura, que também desapareceu, retornando ao seu plano de origem. Dentro do navio, a situação se complicava.
O interior do Trinidade era tomado por entulho, enormes algas e formações de corais. Squall e Legolas buscavam com seus olhos por sinais de Silmara em meio àquela desordem, quando foram surpreendidos por um outro selako, que espreitava por entre as algas. O animal atacou Squall com seus dentes de faca, espalhando o sangue do feiticeiro por todos os lados. Os dois elfos reagiram rápidos, prostrando-se em posição de combate, mas, antes que pudessem fazer qualquer coisa, foram novamente surpreendidos.
_ Dare bia natha!!! – e voz de Silmara ecoou em um grito abafado e distorcido pela água. Uma pequena esfera brilhante partiu do dedo da bruxa em grande velocidade e explodiu sobre os dois elfos. E ao invés de chamas, ondas de eletricidade os envolveram, eletrocutando-os perigosamente. O selako que atacava os dois elfos sucumbiu ao poder elétrico de Silmara e desapareceu. Squall, Legolas e até Cloud ficaram seriamente feridos e espantados com a habilidade da bruxa.
Squall avançou recitando um verso arcano e gesticulando. Iria usar sua mais poderosa magia, que se fazia em forma de uma explosão chamas ardentes. Mesmo embaixo d’água, conseguiu concluir com sucesso os componentes verbais e gestuais que ativavam o feitiço, mesmo embaixo d’água, a bruxa sentiria o calor de suas chamas, ainda que fosse na forma de uma bolha de vapor ou algo parecido. Mas nada aconteceu. Silmara gargalhava sem sofrer qualquer efeito da magia de Squall. Nem sinal de bola de fogo, nem sinal de chamas, nem sequer vapor ou qualquer rastro de energia mágica. A horrenda mulher parecia ser imune à magia.
Atraídos pelo som da batalha, Orion e Nailo entraram no navio destroçado. Protegida por sua camuflagem de algas, a feiticeira não podia ser localizada pelos heróis. Somente Legolas conhecia sua localização exata e tentava revelá-la aos companheiros. Com sua visão apurada, Nailo percebeu rapidamente onde Silmara se escondia. Invocou o poder de Allihanna e as algas que cresciam no chão arenoso o obedeceram. As plantas começaram a se mover freneticamente, como se tentassem laçar umas às outras, pedaços do navio e o próprio Nailo e seus amigos. Mas, no centro da agitação das algas, havia um recanto de calmaria, um local, um círculo de mais de um metro, onde as algas não se moviam, continuando em seu estado estático, sendo agitadas apenas pela corrente marítima.
_ Ela está lá! – gritou Nailo –Naquele lugar onde as algas não se movem!
_ Amigos da vagabunda! Vou matar todos vocês! – a bruxa revelou sua presença, afastando as algas com a mão. Estava envolta por uma esfera translúcida e de brilho tênue, algum tipo de campo de energia que a protegia das magias dos heróis. Com gestos rápidos e palavras arcanas, Silmara criou uma nova explosão de eletricidade sobre os heróis.
As faíscas se espalharam por toda a área do navio, quase chegando a Legolas, que estava mais distante, e a Anix, que estava fora da embarcação. Orion e Squall convulsionavam, tendo espasmos, afetados pela eletricidade que atingia e feria seus corpos. Nailo e Cloud contraíram seus corpos, reduzindo a área por onde a energia poderia ser conduzida e conseguiram sair ilesos do ataque.
A bruxa nadou para cima, escapando do alcance das algas animadas, e para fora do navio. Todos correram para impedir sua fuga, perseguindo-a fora do navio. Squall usou sua varinha mágica e destruiu parte da força física da inimiga, enquanto Lucano usava o poder de Glórienn para curá-lo. Mesmo assim, a bruxa se afastava do grupo, indo em direção ao paredão rochoso próximo ao Trinidade, em direção à caverna.
Orion a cercou, ganhando alguns segundos para que Anix a alcançasse e a atacasse com seu novo poder. Anix recitou as palavras de sua nova magia, a mesma que usara contra a medusa da chuva, e um raio negro saiu de sua mão, atingindo Silmara com precisão. A bruxa ficou ofegante e amaldiçoou o mago, mas não revidou. Sabia que estava mais fraca, que seus poderes eram agora menores do que antes.
Com medo, a mulher fugiu para a caverna, nadando acima de Nailo que bloqueava a abertura na rocha. Nailo desferiu um corte limpo na bruxa com sua espada comprida, mas nem isso a impediu. Enquanto nadava montanha adentro, todos puderam ver algo que os deixou apavorados. Amarrada às costas da bruxa havia uma caixa pequena, toda branca como o marfim. Era decorada com detalhes rebuscados e em sua tampa havia um entalhe em alto relevo. Era uma figura oval, como um espelho, ou um portal mágico. Diante do detalhe havia a figura de uma criatura, um humano talvez, que tinha os braços estendidos para o alto, como se comandasse a abertura do suposto portal e segurava algo em suas mãos. Algo pequeno como um medalhão ou amuleto. O Amuleto dos Planos.
Silmara estava com a caixa que continha o amuleto mágico e desaparecia rapidamente na escuridão da caverna, sem que os heróis pudessem fazer qualquer coisa para impedi-la. O prazo para deter a bruxa e a destruição do mundo se esgotava rapidamente.
Sem perder tempo o hesitar, o grupo penetrou pela abertura na rocha, perseguindo a mulher que desejava dar fim a toda a existência. Orion acionou sua espada de fogo, as labaredas lutavam ferozmente contra a água do mar, conseguindo com muito esforço permanecerem brilhando. Nailo evocou uma magia de proteção contra as magias elétricas da bruxa e acionou sua espada, ficando a salvo das faíscas que corriam desordenadas pela lâmina anã. Anix ficou invisível e todos usaram suas poções mágicas e a ajuda de Lucano para se curarem o dano causado a seus corpos pela bruxa e seus monstros.
Estavam em uma fenda natural que separava duas porções de rocha igualmente gigantescas. Algo, como um terremoto talvez, deveria ter feito as duas montanhas submarinas desabarem uma na direção da outra, escorando mutuamente e deixando uma pequena caverna no espaço que restava entre as duas. A água se tornava cada vez mais escura e fria, à medida que afundavam naquelas trevas. Não havia sinal de vida por ali, nenhum peixe, nenhuma alga ou crustáceo. Nada, nem mesmo sinal da inimiga. Enquanto avançavam, nailo preparava com cuidado os frascos de limo corrosivo que recolhera da medusa da chuva, amarando suas rolhas em um pedaço de corda fina, de forma que pudessem ser retiradas com um puxão. Nadaram por cerca de duzentos metros montanha adentro, sempre descendo cada vez mais, até que avistaram uma luz.
Faíscas serpenteavam logo à frente do grupo, bloqueando aquilo que parecia ser o fim do túnel. Nailo passou no meio dos pequenos relâmpagos sem ser ferido. Os demais foram obrigados a nadar rente ao teto do túnel, para conseguirem passar por cima das faíscas e evitar serem eletrocutados.
Estavam agora em uma ampla caverna circular. Seu teto tinha mais de uma dezena de metros de altura e suas paredes brilhavam de forma estranha. Pequenos furos nas paredes emitiam uma luz fantasmagórica de tom esverdeado. Eram pequenos peixes abissais, com apêndices luminosos sobre suas cabeças e dentes afiados que iluminavam o lugar e se escondiam em suas tocas, apavorados. Havia três outros túneis. Um à esquerda, um à direita e um que seguia em frente. E bloqueando o caminho que seguia adiante estava ela, a bruxa. Quatro bruxas, na verdade.
_ Agora vou matar todos vocês, malditos! – as quatro bruxas estavam a menos de dois metros uma da outra. Moviam-se e falavam de forma idêntica, como se fossem reflexos em um espelho.
Nailo correu e atacou. Sua espada fez um arco longo e atingiu uma das bruxas no peito. A mulher se partiu em milhares de pedaços como se fosse feita de vidro e desapareceu. As três bruxas restantes conjuraram um feitiço, e uma esfera de faíscas elétricas despencou sobre Legolas, Orion e Squall.
Os heróis avançaram, livrando-se dos relâmpagos que faiscavam na entrada da grande gruta. Projéteis de energia pura saíram das mãos de Squall e atingiram uma das bruxas. Todas as três gritaram e se contorceram, como se todas elas tivessem sido afetadas pela magia.
Nailo pegou a corda em sua cintura e arremessou com toda a força os quatro frascos de visco de medusa numa pedra entre duas das bruxas. Os frascos explodiram e chamas azuladas espirraram de dentro deles, atingindo duas das bruxas. Uma delas desapareceu imediatamente, como já tinha acontecido antes. A outra permaneceu. Era a verdadeira.
Silmara olhou ao redor e escolheu Orion para ser o primeiro a morrer. Seus olhos fitaram os do guerreiro por uma fração de segundo. Orion emudeceu e empalideceu, sua espada caiu de suas mãos e seu corpo afundou lentamente até repousar no solo, inerte. Parecia sem vida.
_ Desgraçada! Tome isso! – Anix estendeu as mãos na direção da inimiga e ondas de energia escura a atingiram. Silmara perdeu o fôlego e ficou ofegante, como se tivesse corrido por horas sem parar. No chão, um brilho no peito de Orion despertou a atenção de todos. O medalhão que o jovem havia recebido da velha na estrada brilhava como uma estrela. Seu brilho era alvo e poderoso, sendo visto até através da armadura metálica do guerreiro. Os olhos de Orion piscaram, quebrando o estranho transe em que ele estava, ele agarrou a espada e se levantou.
Squall transferiu seu poder mágico para sua espada e atacou. Nailo veio pelo outro flanco e os dois rasgaram a carne da criatura quase ao mesmo tempo. O ataque de Squall abriu uma ferida enorme na mulher, deixando seu braço esquerdo inutilizado e suas tripas à mostra. Silmara estava agora cercada por todos os lados. A bruxa tentou um último ataque, visando enfraquecer Nailo, mas já era tarde. O ranger resistiu á magia maligna da feiticeira. Anix surgiu de trás dele num salto, com a mão direita tomada de uma energia brilhante. Desferiu um soco no seio direito da mulher e sua magia explodiu em forma de faíscas elétricas. Todos que estavam ao redor, com exceção de Nailo, sentiram um potente choque, mas resistiram. Já Silmara, foi eletrocutada até a morte.
A bruxa emitiu um último e desesperado grito, afogado pela água salgada, que ecoou por toda a caverna, e encerrou seus dias de vilania para sempre. Seu corpo tocou o solo suavemente, carregado pelos braços de Oceano. Então, tudo tremeu.
O teto, as paredes e o chão começaram a tremer a desabar. Um estrondo ensurdecedor veio do túnel da esquerda, arrastado por uma violenta corrente de água que arrancava pedaços da rocha bruta como se fosse feita de papel. Um enorme redemoinho se formou diante dos heróis, bloqueando o caminho de saída. As águas giraram velozmente e se moldaram até formar uma criatura. Era um humanóide gigantesco, tão alto que quase precisava se curvar para não bater no teto da caverna. E seu corpo era composto única e exclusivamente de águas revoltosas que pareciam sólidas e capazes de tocar e segurar qualquer tipo de coisa. Era uma criatura viva feita de água, uma criatura mágica que vinha do reino do deus Grande Oceano. Um elemental da água.
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