janeiro 10, 2007

Campanha B - Capítulo 3 – A exilada

Capítulo 3 A exilada

Era o fim da tarde quando Serena atravessou a muralha e adentrou na cidade de Valkaria. Cansada, após uma longa viagem, aquela imensa cidade era o primeiro local “civilizado” que a jovem elfa via há horas. Serena caminhava pelas ruas pavimentadas da metrópole, desviando das muitas pessoas que circulavam por elas naquele dia. Ao longe ela podia ver a imensa estátua da deusa Valkaria, imponente e magnífica, mas também solitária. Diferente dos turistas ocasionais, e até mesmo de muitos dos moradores do local, Serena não estava nem um pouco admirada com aquela obra gigantesca. Nem mesmo a cidade em si, com toda sua variedade cultural e racial, com todas as suas lojas exóticas, seus templos, suas ruas iluminadas, nada disso a impressionava.

Sim, para Serena aquele local era completamente sem graça, desagradável até. Em parte isso se devia ao fato de ela estar acostumada a viver longe das cidades. Serena era uma caçadora, ou, como preferiam dizer os aventureiros e mercenários, uma ranger. A jovem passava seus dias em meio à natureza, percorrendo as matas e bosques, nadando nos rios, pescando, caçando e coletando seu próprio alimento. Já estava desacostumada com a vida da cidade, e estar ali, naquele ambiente populoso, a fazia sentir-se pouco à vontade.

Mas, não era somente a preferência por lugares mais “selvagens” que a fazia sentir-se daquele jeito. Para Serena, aquela cidade que todos, especialmente os humanos, tanto falavam e admiravam não passava de um lugar cinzento, sujo, distorcido. Embora estivesse há alguns minutos percorrendo uma região nobre da cidade, para ela as ruas pareciam imundas e mal-cheirosas. Os prédios tinham uma arquitetura que lhe feria os olhos. Além disso tudo, as ruas estavam tomadas pelos ignorantes e gananciosos humanos, criaturas que não se importavam nem um pouco em avançar por cima do mundo como uma nuvem de gafanhotos faminta, devastando tudo o que encontrasse em seu caminho. Além deles, existiam os sempre alegres e simpáticos halflings, mas também os sempre rudes e estúpidos anões. Mas, o que mais a incomodava naquele lugar, era a presença abundante dos goblins. Essas pequeninas e ignorantes criaturas eram cidadãos de segunda classe em todo o território do reinado, mas eram cidadãos e como tal gozavam dos mesmos direitos que outras criaturas possuíam. Trabalhavam em serviços braçais ou como serviçais e, freqüentemente, muitos deles se tornavam criminosos. Serena irritava-se ao ver aquelas criaturas que ela tanto odiava circulando livremente pelas ruas da cidade e, em alguns casos, sendo tratados melhor do que os se sua raça. Era certo que Valkaria era uma cidade próspera, viva e pulsante, mas, para Serena, aquele era um lugar decadente, imundo e repugnante, muito diferente de sua amada e saudosa Lenórienn.

Serena era, assim como boa parte dos elfos que restavam em Arton, uma exilada. Os elfos, outrora uma civilização poderosa e próspera, haviam sido recentemente massacrados e derrotados por uma horda de goblinóides chamada de Aliança Negra. A maravilhosa cidade élfica Lenórienn, com suas torres de marfim, seus palácios suntuosos e sua magnífica arquitetura emoldurada em harmonia no meio da floresta, havia caído após um longo período de resistência contra os hobgoblins, na chamada infinita guerra. Os elfos, orgulhosos e imponentes, sempre foram superiores e rechaçavam cada investida hobgoblin com facilidade. Isso até o surgimento do lendário Twor Ironfist. Twor era um bugbear gigantesco até para os padrões de sua raça. Tão grande quanto ele mesmo era sua inteligência. Percorrera o mundo aprendendo táticas de guerra até finalmente retornar à sua tribo, tornar-se seu líder e começar a reunir seu exército. Twor foi aos poucos derrotando os outros chefes de tribos, tornando-se líder de cada uma delas, até finalmente se transformar no líder de todos os bugbears. Seu próximo passo foi unir-se aos hobgoblins, ajudando-os a derrotar os elfos. Twor sozinho invadiu a cidade de Lenórienn e seqüestrou a princesa dos elfos, fazendo-a de refém. Graças a isso, às máquinas de guerra dos hobgoblins, e às táticas sujas de Twor, em pouco tempo, a infinita guerra teve um fim. E os elfos foram derrotados. Lenórienn foi invadida e devastada pelos hobgoblins, que agora a faziam de lar. O pacto entre Twor e os hobgoblins se fortaleceu e o bugbear continuou em sua empreitada, unindo todas as espécies goblinóides que existiam na porção sul do continente e formando um grande exército, que agora marchava rumo ao norte, rumo ao reinado. Em seu caminho, nada restou em pé. Os antigos reinos humanos do continente sul, Lamnor, foram completamente destruídos. Aos poucos sobreviventes, fossem eles elfos, humanos, ou até mesmo anões e outras criaturas, restou apenas uma saída, fugir. Os que sobreviveram à carnificina promovida pela Aliança Negra fugiam para o norte, buscando abrigo no território do reinado. E Serena estava entre esses fugitivos.

Assim como muitos, Serena trazia em seu coração uma grande amargura. Sua família, seus amigos e vizinhos tinham sido brutalmente assassinados pelos soldados de Twor Ironfist. A jovem estava fora de sua casa quando tudo aconteceu. As muralhas de Lenórienn caíram sob uma chuva de rochas lançada pelas catapultas hobgoblins, soterrando diversas vidas. Todos fugiam desesperados, tentando buscar abrigo contra o bombardeio inimigo. Alguns elfos, orgulhosos de sua suposta superioridade, recusavam-se a acreditar no que estava acontecendo com sua cidade. Morreram na ilusão de que jamais seriam vencidos.

Serena, por sua vez, era astuta e ágil, o que lhe garantiu uma fuga rápida e segura. Entretanto, em Lenórienn não havia mais algum lugar sequer que fosse seguro, e ela entendeu isso rápido. Serena correu para sua casa, para se juntar à sua família e com ela fugir para a floresta. Mas, por onde ela passava encontrava batalhas e morte. Enquanto os soldados combatiam ferozmente, tentando impedir a invasão, ou no mínimo tentando ganhar tempo para o povo poder fugir, Serena desviava-se da flechas que voavam e das pedras que choviam, orando a Glórien, a deusa dos elfos, para que ela a protegesse e à sua família. Mas, quando Serena finalmente chegou à sua casa, já era tarde demais.

Seus olhos brilharam ao ver sua casa, construída em meio às árvores como se fizesse parte da vegetação. Mas, também se encheram de lágrimas ao ver que o telhado e madeira e palha estava em chamas. Suas pernas estremeceram e paralisaram por completo logo depois. Sua respiração cessou por longos e intermináveis segundos. Então, para seu alívio, a porta se abriu. Sua família estava segura, pensou ela, mas, de dentro da casa, ao invés de elfos, só o que saiu foi um bando de hobgoblins e goblins apressado. Portavam armas, escudos e vestiam armaduras, todos manchados de sangue. Sangue élfico. Serena assistiu à cena, paralisada, impotente, enquanto os goblinóides deixavam sua casa e corriam em direção ao centro de Lenórienn, em busca de mais vítimas. Minutos depois, quando suas pernas finalmente obedeceram e ela pode se mover novamente, Serena avançou até sua casa, a passos curtos, lentos e pesarosos.

Lá dentro, a jovem encontrou a dor. Seu pai jazia bem diante da porta com o pescoço profundamente rasgado pela lâmina de algum maldito hobgoblin. Sua mãe, mais adentro, estava imóvel no chão, com uma flecha rudimentar cravada no dentro de suas costas. Seus olhos ainda vertiam lágrimas, enquanto sua mão tentava alcançar a do marido morto. A irmã de Serena estava sobre a mesa da cozinha, ensangüentada. Sua roupa de seda e linho estava rasgada, seus braços amarrados firmemente nos pés da mesa. Suas pernas abertas traziam as marcas da violência na forma de arranhões feitos por mãos goblinóides. Havia sido brutalmente violentada, até que seu delicado corpo estivesse sem vida. O irmão menor de Serena, vítima do mesmo tipo de violência, jazia morto no chão com o pescoço quebrado, e totalmente despido. Pernas, nádegas e costas apresentavam arranhões e cortes, deixando evidente o que lhe acontecera. Talvez seu irmão tivesse servido de brinquedo nas mãos dos goblins, enquanto os hobgoblins se divertiam violentando sua irmã.

Serena chorou. Chorou silenciosamente, enquanto cobria os corpos daqueles que tanto amava. Com uma tocha, terminou de atear fogo ao que um dia fora um lar feliz, e assim sepultou sua amada família. Quando suas lágrimas secaram, o silêncio finalmente foi quebrado. Serena gritou e urrou, como uma fera selvagem. Em sua mente estavam agora apenas os rostos daqueles miseráveis que haviam matado seus familiares. A elfa saiu correndo pelas ruas de Lenórienn, enfurecida. Recolheu um arco, flechas e uma espada de um dos seus antigos amigos, agora morto, e saiu em busca de vingança.

Serena juntou-se a um pequeno grupo de sobreviventes, e junto com eles conseguiu reunir muitos dos que haviam escapado do massacre para fugirem de sua antiga cidade. Também com eles, ela aprendeu várias técnicas que a tornaram uma combatente e uma caçadora competente. E, o tipo de presa favorito de suas caçadas era, óbvio, goblinóides. Serena não descansou até conseguir matar um a um os desgraçados que haviam invadido sua casa e matado sua família. Ela fazia questão de olhar nos olhos de cada um deles, enquanto os matava lenta e dolorosamente com suas flechas ou sua espada. Quando finalmente sua vingança estava cumprida, Serena decidiu que era hora de abandonar Lamnor e se juntar aos refugiados no continente norte.

Assim, a bela e ressentida elfa passou seus dias viajando, escondida entre a floresta para ocultar-se do exército goblinóide que se tornava cada vez mais numeroso. Vários anos se passaram, desde a destruição do reino dos elfos no sul, Serena viajou por incontáveis léguas, escapou de dezenas de perigos, suportou as mais duras privações até que finalmente conseguiu atravessar o Istmo de Hangpharstyth, o estreito pedaço de terra que unia as porções norte (Remnor) e sul (Lamnor) de Arton.

Agora, anos após a trágica perda de sua família, Serena andava pelas ruas de Valkaria. Já não era mais a inocente e alegre elfa que costumara ser. A vida e suas tragédias tinham-na moldado uma mulher forte, corajosa e independente. Serena caminhava pelas vielas da cidade com passos firmes e decididos. Seus belos olhos verdes encaravam com frieza e desprezo os que a observavam. E o desprezo se transformava em ódio cada vez que seu olhar encontrava algum goblin que passava.

Serena tinha um objetivo claro para estar naquela cidade. Estava cansada de andar sozinha. Embora suas habilidades com o arco fossem inegavelmente extraordinárias, Serena sabia que havia muitos perigos espalhados pelo mundo, perigos demais para serem enfrentados sozinha. Principalmente em se tratando de uma elfa formosa como ela.

Os elfos eram desprezados em Arton, um comportamento que remonta à época em que apenas Lamnor era povoado. Os reinos humanos que começavam a se formar e a prosperar buscaram fazer alianças com os elfos de Lenórienn. Mas, os elfos se recusaram a negociar com aqueles que eles consideravam inferiores. Sendo assim, os reinos humanos assinaram um tratado de não interferência em assuntos élficos. Com esse tratado, os humanos jamais se intrometeriam em qualquer assunto ligado ao reino élfico, fosse para bem, fosse para mal. Dessa forma, os humanos não se importaram quando o reino dos elfos foi destruído. Quando o regente dos elfos percebeu que precisava da ajuda dos humanos, já era tarde demais. Assim, por conta desse fato no passado distante de Arton, os elfos eram todos considerados arrogantes e prepotentes pelos humanos e demais raças. Isso, aliado ao fato de possuir uma grande beleza física, tornava ainda mais difícil a vida de Serena. Ora desprezada, ora atacada, fosse por monstros ou por algum pervertido interessado em se aproveitar dela, Serena estava sempre correndo perigo, em tudo que fazia. E para enfrentar esses perigos iminentes, nada melhor do que poder contar com amigos. Assim, Serena pretendia encontrar um grupo de pessoas que compartilhassem dos mesmos gostos, das mesmas idéias, do mesmo amor pela vida livre e pela aventura e, principalmente, do mesmo ódio pelos goblins, hobgoblins, bugbears, orcs... Enfim, Serena desejava encontrar um grupo de aventureiros, com quem pudesse percorrer todo aquele imenso mundo em busca de emoção, experiência e tesouros.

E, não havia melhor lugar no mundo para se encontrar qualquer tipo de pessoa que se desejasse do que Valkaria. Assim, ela entrou na maior e mais populosa cidade de todo o mundo conhecido, seguindo diretamente para o coração da metrópole, o centro velho, onde ficava a maior obra de engenharia já vista pelos artonienses, a estatua de Valkaria, a deusa da ambição, criadora dos humanos e protetora dos aventureiros.

Serena passou diante da estátua, sem se importar com aquela obra magnífica. Para ela, tudo que não se parecesse com Lenórienn não lhe despertava interesse. Viu quando um estranho homem vestido de branco criou confusão ao reunir uma multidão e anunciar que tinha a prova de que a estátua sugava poderes mágicos, exibindo um rato morto em suas mãos. Serena sabia que estava em um lugar cheio de pessoas estranhas e diferentes, e decidiu ignorar o homem e seguir seu caminho.

A elfa parou diante de um poste onde um lampião aceso tremulava ao vento. Pregados no poste, dezenas de papéis com anúncios e notícias despertaram a atenção dela. Serena pôs-se a ler os papéis procurando por algo de seu interesse. Eram anúncios de pessoas procurando por outras pessoas, propagandas de lojas da cidade, retratos de bandidos procurados pelas autoridades, e muitos outros. Ela esperava encontrar ali uma oportunidade, algum anúncio procurando por aventureiros ou algo do gênero em que pudesse empregar suas habilidades.

Serena lia cada um dos anúncios, atenta e ansiosa, até que algo de estranho chamou sua atenção. O mesmo homem que ainda há pouco causara um pequeno distúrbio, agora gritava como louco, para parar uma carroça conduzida por um bando de halflings. Dentro da carroça, aprisionado em uma jaula, havia um enorme esqueleto animado por magia negra. Serena assistiu confusa ao homem que tentava fazer amizade com os halflings e falava coisas estranhas como chamá-los de irmãos e dizer que queria se tornar um lich. Quando os pequeninos finalmente se livraram do tal homem, o gigantesco esqueleto que eles transportavam arrebentou a jaula na qual estava e saiu andando em direção ao homem. Aquele humano estranho e insano passou então a conversar com o morto-vivo e a acariciá-lo, como se fosse um animalzinho. Depois, mandou que ele pulasse, e o esqueleto deu um pequeno salto. Mandou então que ele saltasse na carroça, e a criatura lançou seu enorme corpo ósseo sobre o veículo, destruindo-o. Depois mandou que a criatura se sentasse, e assim ela fez, esmagando os pobres cavalos, que puxavam a carroça, com seu peso. E então, após tudo isso, o homem saiu andando tranqüilamente, como se nada tivesse acontecido. Mas, não foi longe. Serena viu com satisfação quando vários oficiais da milícia levaram o homem preso. Ao menos alguma coisa naquela cidade a agradara.

Depois de incidente, e de ter lido todos os anúncios, sem encontrar o que procurava, Serena decidiu pedir informações em algum lugar. Assim, ela se dirigiu a uma taverna próxima, uma grande e movimentada taverna chamada Olho de Grifo.

Já dentro da taverna, ela sentiu uma ponta de arrependimento por estar ali. Só havia homens, e todos eles não passavam de um bando de bêbados e desocupados sujos e mal-cheirosos, que insistiam em assediá-la. A cada passo dado, Serena era obrigada a ouvir algum gracejo desagradável, alguma proposta indecente, alguma obscenidade ou algum elogio que mais parecia com ofensa. Mas, apesar de todo esse incômodo, ela estava decidida a ir adiante, não deixaria que aqueles nojentos a intimidassem.

Escolheu uma mesa no lugar que lhe parecia menos desconfortável e sentou-se. Pouco tempo depois, um dos homens veio importuná-la.

_ Boa noite senhorita! Será que posso lhe fazer companhia? - Perguntou o rapaz, um homem alto e moreno, de barba por fazer e que cheirava muito mal.

_ Não! E nem pense em fazer alguma gracinha, ou eu farei um furo extra em sua cabeça! – rosnou a elfa, apontando para o arco.

_ Nossa! Mas que garota nervosa! Que selvagem! Essa daí deve arranhar e morder! Fiquem longe dela rapazes! – zombavam os clientes da taverna, deixando Serena ainda mais irritada.

O homem tentou ainda argumentar, mas foi totalmente ignorado pela moça. Mesmo assim, ele permaneceu ali, olhando-a, até que uma outra pessoa se aproximou.

_ Olá! Posso conversar com você? – era uma voz feminina. Serena olhou e viu uma mulher humana, quase tão bela quanto as damas élficas. Vestia-se com roupas belas e limpas, seu corpo era adornado com jóias lindíssimas e ela não se parecia em nada com as outras mulheres da taverna que estavam ali para venderem seus corpos por alguns tibares sujos.

_ Depende! Se você não estiver querendo me assediar! – respondeu Serena, ainda desconfiada.

_ Claro que não! Posso me sentar? – perguntou a mulher, sorrindo.

_ Sim, claro! Sente-se! E então? Sobre o que vamos conversar? – disse o homem que estava em pé ao lado de Serena, puxando uma das cadeiras e sentando-se.

Serena pegou seu arco rapidamente e apontou uma flecha entre os olhos do rapaz. O olhar da elfa parecia com o de um animal selvagem sedento de sangue. Sem dizer nada, o homem se levantou, encabulado, e foi embora rapidamente.

_ Notei que você não é daqui! E pelos seus trajes, você deve ser o que eu estava procurando, uma aventureira! Certo? – perguntou a humana.

_ É, você acertou! Vim pra cá pra encontrar para encontrar um grupo ao qual eu possa me juntar! Preciso de pessoas confiáveis e que sejam destemidas! Sabe onde eu posso encontrar alguém assim? – perguntou Serena, enquanto guardava a flecha na aljava.

_ Sei sim! Você acaba de encontrar uma! Muito prazer, eu sou Nirvana!


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