março 24, 2009

Capítulo 343 – Raios, trovões e uma canção de morte

Finalmente, após dias que pareceram uma eternidade, o grupo de heróis começou a penosa descida rumo à torre maldita onde encontrariam seus mais odiados inimigos. O caminho não era fácil, como previam. Desciam uma rampa íngreme, um caminho natural repleto de pedras, desníveis, buracos. Nailo tentava encontrar o melhor caminho para passarem, mas aquele terreno seco e duro não era sua especialidade. Além disso, o céu escurecia rápido, não só pela chegada da noite, mas também pela tempestade que se anunciava. Enfim, após dias de ameaças, um trovão ribombou no céu dando início a uma forte chuva. A água despencou do céu com violência. Inicialmente eram apenas poucos pingos, grossos e pesados como socos, mas depois de alguns minutos já chovia fartamente. O chão pedregoso tornou-se liso e lamacento, reduzindo a velocidade dos caminhantes. Seus corpos ficaram ensopados, frios, mas o sangue que corria em suas veias ainda ardia, desejando justiça, vingança.

Muito demoraram em sua descida até o fundo do abismo. Quando lá chegaram, a noite já se fazia presente. A água ainda caia inclemente e a escuridão só não era completa por causa do brilho das armas mágicas de Orion, Legolas e Nailo, e pelos raios que cortavam as nuvens de quando em quando, como dragões saltando de um lado para outro. Uma enxurrada cada vez mais veloz e turbulenta começava a se formar na rampa de descida e o fundo do vale onde se encontravam começava a se encher de água. À frente do grupo, uma torre sinistra assomava na escuridão.

Era uma construção robusta que se elevava quase cem metros acima do solo do abismo. Sua base circular devia medir em torno de trinta metros de diâmetro. Toda sua extensão era decorada com esculturas grotescas e profanas. Carrancas demoníacas, rostos em agonia, garras e dentes esculpidos na pedra adornavam a torre. O topo era rodeado por presas gigantescas de pedra que se projetavam para o alto ameaçadoramente, formando algo semelhante às ameias da muralha de um castelo.

_ Anix, empreste-me a sua vassoura mágica. Quero dar uma olhada por cima dessa torre. Aqueles dentes lá no alto parecem proteger algo – disse Nailo.

Anix entregou a vassoura ao amigo que logo levantou vôo e ganhou altura com dificuldade no meio da tempestade. Nailo subiu até passar a altura da torre e percebeu, apesar da escuridão, que por trás da muralha de dentes pontiagudos havia um oco na torre, como uma entrada ou um pavimento para observação.

Um relâmpago cruzou o céu.

Nailo desceu rapidamente e juntou-se aos amigos, relatando o que vira. Era possível haver uma entrada por cima da torre ou então um posto de vigia protegido pelas presas de pedra. Entretanto, o caminho mais promissor era ainda por baixo. Conseguiam distinguir no limite da visão uma construção baixa se saindo à esquerda da torre onde havia uma pequena passagem de entrada. Sem dúvida era aquela a porta principal da fortaleza.

Os heróis continuaram rumando em direção à pequena casa que servia de entrada. Quando estavam a apenas uma corrida curta da porta, um raio despencou do céu iluminando a noite chuvosa e atingindo o corpo de Legolas.

O arqueiro foi atirado contra o chão, seu corpo tinha queimaduras em diversas partes e seus ouvidos escorriam filetes de sangue. Legolas sentia o corpo dormente e dolorido. Seus ouvidos ficaram surdos por um momento e depois passaram a incomodá-lo com um zunido agudo e constante. Não bastavam Zulil ou Teztal, agora a própria chuva tornava-se inimiga dos aventureiros.

_ Vamos correr até a entrada! – gritou Squall. O Vermelho ajudou Legolas a se levantar e correu puxando o amigo para o abrigo anexo à torre. Imediatamente todos correram seguindo-os. Estariam a salvo em poucos segundos, mas o céu parecia disposto a impedi-los a todo custo. Um novo raio despencou do alto, desta vez sobre Nailo. O ranger rolou no chão encharcado, com seu corpo ferido e sua mente desnorteada. Viu os amigos correndo na escuridão, seu fiel lobo latindo para ele e se levantou milagrosamente. E então veio o segundo golpe. O corpo de Nailo formigou e uma faísca cegou seus olhos enquanto descarregava milhões de volts sobre seu corpo. Nailo jogou-se para frente, cambaleando na direção dos amigos, aumentando a velocidade gradualmente à medida que se recuperava do efeito do relâmpago. Alcançou os companheiros já na entrada da torre. Todos estavam ali, exceto Anix. O mago ficara para trás.

Anix estava parado no meio da tempestade com o cajado mágico erguido para o alto. Estava totalmente absorto, recitando versos arcanos complexos. Uma magia. Anix iria usar seu poder para obrigar a natureza a se dobrar à sua vontade, iria obrigar aquela tempestade a cessar e deixá-los em paz. A chuva começou a diminuir, então um novo raio caiu, desta vez em Anix.

O mago sentiu a dor lancinante tomar conta de seu corpo, sentiu sua consciência vacilando, mas não esmoreceu. Continuou em pé, conjurando seu feitiço, desafiando as nuvens e aquele que as controlava. Outro relâmpago. Anix curvou o corpo, gemendo enquanto proferia as palavras e executava os gestos mágicos. Outra fagulha o atingiu, seus joelhos tocaram o chão, sua boca cuspiu sangue e a concentração foi quebrada. A magia fora perdida.

Anix ergueu-se com esforço e pôs-se a correr. Seus amigos já haviam desaparecido dentro da torre, estavam seguros. Restava juntar-se a eles e salvar a pele da ira dos céus. Mais um relâmpago o atingiu, Anix cambaleou. Outro raio e suas pernas começaram a ficar rígidas recusando-se a obedecer. Outro e mais outro. Anix estava a ponto de morrer. Acelerou o passo o mais que pode. Estava quase na entrada quando viu Lucano saindo da torre arrastando um corpo. Era Squall.

_ Anix! Ajude! Todos desmaiaram! – gritou o clérigo. Estava pálido.

Lucano esbofeteou a face do amigo e chamou por seu nome até ele acordar. Anix juntou-se a eles e os três olharam para dentro. E se espantaram.

A pequena cabana era um ossuário. Centenas de ossos decoravam suas paredes e teto. Fileiras de crânios adornavam as paredes, ossos de pernas e braços colados uns nos outros formavam ornamentos como lustres, candelabros e outros. Espalhados pelo chão de terra e rocha havia quase vinte corpos, entre eles, Legolas, Nailo e Orion. Vinhas cresciam por toda a câmara e do solo bulbos gigantes brotaram, se abriram e abocanharam as cabeças dos três aventureiros.

_ Lucano, faça aquela magia de deixar surdo em mim! – pediu Squall exaltado. Anix não entendia o que acontecia.

_ Ótima idéia! Lá vai! – Lucano apontou o símbolo de Glórienn para Squall e conjurou a magia. Sem ouvir nada ao seu redor, Squall invadiu o ossuário.

O feiticeiro arrancou com a espada o broto que engolira Nailo e começou a arrastá-lo para fora, apressado. Relâmpago mordia a bota do companheiro ajudando o feiticeiro a levá-lo para fora daquele lugar maldito.

Lucano entrou na câmara e cortou os bulbos que agarravam Legolas e Orion, agarrou o humano pela perna, recolheu Cloud do chão e começou a levá-los para fora. Segundos depois, Squall retornou e tirou Legolas de lá de dentro. Squall e Lucano começaram a chacoalhar os amigos para acordá-los.

_ Squall, o que está acontecendo? Por que eles desmaiaram? – perguntou Anix, confuso. O irmão nada respondeu, continuava balançando a cabeça de Nailo para fazê-lo despertar.

_ Não adianta falar com ele, Anix – disse Lucano. – Eu usei uma magia para deixá-lo surdo.

_ Surdo? Por quê? – perguntou o mago.

_ Era a única forma de entrar lá em segurança – Lucano apontou com displicência para o ossuário, enquanto tentava tirar Legolas do transe.

Sem entender o que acontecia, Anix invadiu o ossuário. Catorze corpos em variados estados de decomposição jaziam ali. As únicas coisas vivas eram ele e um arbusto de vinhas que crescia por toda a sala. Para sua surpresa, não havia porta que conduzisse para dentro da torre. Anix deu mais um passo, uma melodia fúnebre invadiu seus ouvidos, ficando cada vez mais alta, quase ensurdecedora. A música tomou conta da sala inteira, parecia sair de todos os lugares. Anix sentiu sua cabeça latejar, seus olhos escureceram, seus membros amoleceram e ele desfaleceu.

Anix acordou segundos depois, deitado na chuva com o rosto ardendo devido aos tapas recebidos de Squall que tentava acordá-lo. A dor sumiu repentinamente, Lucano usava magia para curar os estragos feitos pelos raios e pela mão de Squall. Agora finalmente entendia porque seu irmão tinha pedido para ficar surdo.

_ Como vamos entrar? – perguntou o mago.

_ Squall vai procurar a entrada para nós. Deve existir alguma passagem secreta nesta câmara que conduza para dentro da torre – respondeu Nailo. – Vou usar o poder que Allihanna me deu para falar com o Cloud. Ele transmitirá mentalmente ao Squall o que queremos que ele faça na câmara.

_ Antes quero testar uma coisa. Essa música só funciona quando passamos pela porta? – indagou Anix. O mago se aproximou da entrada lentamente. Não ouviu som algum, só a chuva despencando generosamente sobre sua cabeça. Relâmpagos riscavam o céu e fulminavam o solo, mas desta vez bem longe dele e seus amigos. Deu um passo para dentro. A melodia começou novamente em tom baixo. Anix avançou mais um passo e ouviu a música se elevar à medida que ele avançava câmara adentro. Recuou e saiu do ossuário antes que não pudesse suportar a música novamente.

_ Isso mesmo. A música só toca quando entramos pela porta. Então talvez possamos entrar por outro lado sem acionar essa música maldita. Vou entrar pela dimensão das sombras – anunciou Anix.

O elfo evocou as palavras que acionavam a magia, fez os gestos necessários e desapareceu na sombra do ossuário. Sua magia era imprecisa, apesar de extremamente útil, mesmo assim Anix conseguiu sair das sombras dentro da saleta, exatamente onde desejava. Estava dentro do ossuário, e novamente o som sinistro da melodia voltou a ecoar no ambiente. Anix correu para fora da câmara antes de ser apanhado pelo efeito mágico da música.

_ Não tem jeito. Squall, vá você! – mandou Anix. Nailo transmitiu a ordem a Cloud na língua dos pássaros e um desejo quase incontrolável de entrar no ossuário tomou conta da mente de Squall. Compreendendo o que se passava, o feiticeiro invadiu a câmara novamente.

Começou a tatear as paredes em busca de alguma passagem secreta que levasse para dentro da torre. Do lado de fora, todos podiam ouvir o som da música baixinho. Se Squall não estivesse privado de sua audição, certamente já estaria caído no chão ao lado dos mortos. Os mortos! Talvez eles tivessem a resposta para aquele mistério. Anix lançou uma mágica sobre os corpos e detectou magia em um deles. A aura vinha de seus pertences, mais precisamente da capa e da aljava presa às costas do cadáver.

A informação foi passada a Cloud e através dele Squall sentiu o desejo de se aproximar daquele cadáver mais ao fundo. Os companheiros gesticularam para Squall retirar a capa e a aljava e assim ele fez. Arremessou os objetos para os companheiros e voltou à sua busca pela entrada secreta. A capa era mágica, assim como as flechas. O tecido mágico mudava sua cor sutilmente, permitindo ao seu usuário se camuflar em quase qualquer ambiente. Os projéteis tinham sua precisão e afiamento aprimorados por magia, mas apenas levemente. O feiticeiro olhou os demais corpos. Nada encontrou de útil para o grupo, mas em todos eles notou uma estranha marca como a de uma mordida na região da nuca. Nailo, Orion e Legolas checaram seus corpos e notaram que tinham as mesmas marcas, revelando o que acontecera aos defuntos: seus fluídos vitais tinham sido sugados pela estranha planta que brotara do chão. Por sorte eram um grupo numeroso e Lucano havia resistido ao feitiço daquela saleta maldita.

Squall revirou toda a extensão do ossuário sem encontrar passagem secreta ou maneira de desativar a música maldita. Não havia nada ali, nenhum instrumento ou mecanismo que pudesse emitir aquele som debilitante, apenas alguns mortos, que já tinham sido investigados pelo feiticeiro, e a planta que crescia naquela porção fértil de solo. A planta. Sim, só podia ser ela, pensou Nailo. Com gestos e a ajuda de Cloud pediu a Squall para retirar uma muda da estranha erva. Contudo, não havia mudas, era apenas uma única vinha que crescia do solo e se espalhava por toda a câmara. Squall foi até o caule da planta e tentou arrancá-lo. Não conseguiu. Olhou para fora e viu Nailo gesticulando algo que ele entendeu de imediato. Squall saiu do ossuário sorrindo. Apanhou algo em sua bolsa de materiais mágicos e executou o feitiço. Uma bola de fogo explodiu dentro da saleta, destruindo os ossos nas paredes, os cadáveres mais antigos e a planta por completo. Após as chamas se extinguirem, Squall voltou a entrar. Todos os seus amigos aguardavam observavam ansiosos da entrada. Então veio a feliz constatação: com a destruição das vinhas a música também cessara completamente.



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