janeiro 28, 2009

Capítulo 332 – Panteão


Era o décimo quarto dia sob Altossol. O ano era 1397. O local, algum lugar fora de Arton.

A bela elfa correu pelos imensos corredores de mármore frio e alvo. Estava atrasada. Passava com desdém por aqueles salões gigantescos, todos milimetricamente construídos de forma que cada pequeno detalhe, cada escultura, cada adorno, porta ou janela fosse perfeito. Sim, tudo ali era perfeito e alinhado. Todas as mesas de ébano pela qual passavam tinham número par de pernas, todas iguais entre si e igualmente distribuídas ao redor do móvel. Cada lado de cada sala era exatamente igual ao lado oposto. Cada escultura, quadro ou móvel que houvesse de um lado, teria seu igual do outro lado da sala, em igual posição, como se um lado fosse o reflexo perfeito do outro num espelho. Ela odiava aquilo tudo. Aquele lugar poderia até parecer belo para outra pessoa, mas não para ela. Achava aquela exatidão toda, aquele cuidado obsessivo com a ordem de cada grão de poeira tedioso e desnecessário. E, acima de tudo, injusto, o que contrariava a própria natureza daquele lugar incomum. Toda aquela perfeição e ordem de nada serviram para ajudá-la quando mais precisou, quando seus filhos queridos pereceram. Fora injusto o que acontecera, por isso odiava aquele lugar, considerado um local de justiça. Ainda assim, corria apressada, não pelo atraso, mas por desespero. Seus cabelos púrpuros agitavam-se sob o rufar de seus passos delicados, cada fio descrevendo ondulações que eram igualmente repetidas por algum outro fio no lado oposto de sua bela cabeleira. Seus olhos eram o mais fiel retrato da aflição, assim como era aflito seu coração já tão cheio de dor e sofrimento. Uma gota de lágrima escorreu do olho esquerdo, seguida ao mesmo tempo por outra de mesmo tamanho e forma que escorrida de seu olho direito. Ambos verdes como a mais bela das esmeraldas. Parou. Diante dela uma gigantesca porta de mármore, ricamente trabalhada, dividida em duas partes exatamente idênticas. Havia chegado. Restava agora atravessar aquela porta e lutar de todas as formas possíveis para impedir o destino que se anunciava. Mas, apesar de toda a agonia, ela tinha esperança de que tudo ficaria bem. Tinha confiança em sua superioridade, e na daqueles cujo destino estava prestes a ser decidido que, assim como ela, eram a perfeição. A elfa atravessou as portas à sua frente, fechando-as atrás de si. Uma voz de trovão ecoou, enérgica, quando a porta se fechou.

_ Está atrasada, Glórienn! Mais do que a qualquer outro, o assunto que aqui será discutido interessa a você! Ainda assim se atrasou! – era um homem alto e vigoroso, alojado dentro de uma imponente armadura brilhante, que falava com visível irritação. Não suportava o fato de que a elfa, com seu atraso, tinha perturbado a ordem que imperava em sua morada. Um pequeno homem, vestido em túnicas engraçadas e disformes, sorriu sentado no lado oposto.

_ Ainda assim, ela chegou no horário que eu havia previsto! Seu atraso estava destinado a acontecer! – rugiu um pássaro envolto em chamas que ocupava uma das cadeiras da enorme távola.

_ Eu também já sabia disso! – disse uma mulher muito velha, porém cheia de vitalidade, que tomava parte da reunião – Era fácil deduzir isso, bastava apenas um pouco de conhecimento!

_ Bem, agora isso já não importa! Tome seu lugar, Glórienn! E vamos começar a reunião! – disse Khalmyr, o deus da justiça e da ordem, já mais conformado com o atraso da elfa.

Glórienn se sentou, pesarosa. Odiava estar ali. Odiava aquele lugar e odiava ainda mais aquelas pessoas. Não suportava a companhia dos outros dezessete deuses. Apenas tolerava um ou outro dos presentes e pouca afinidade possuía com eles. E, acima de tudo, ela odiava Ragnar com todas as suas forças. Fora por causa desse ódio e pelo desejo de vingança que um grande mal, um mal rubro que devastava tudo, chegara a Arton. E agora novamente um grande mal estava prestes a surgir no mundo, e precisava ser detido.

_ Como bem sabem, estamos reunidos aqui para decidirmos o destino do escolhido de Azgher e do mundo como um todo – era Khalmyr, dano início à reunião. – Vocês todos já conhecem a história, mas vou repeti-la de forma resumida para que não haja dúvidas – foi interrompido.

_ Permita que eu faça isso, Khalmyr! – uma nova voz imponente se elevou quente e brilhante na sala. Era Azgher. – Como todos sabem, havia em Arton um grupo de mortais que me servia com devoção. Por sua fidelidade e dedicação, decidi presenteá-los com uma dádiva. Essa dádiva seria dada àquele que conseguisse chegar mais próximo de mim na terra onde aquele povo vivia. O escolhido recebeu grandes poderes para que pudesse conduzir seu povo e fazê-lo prosperar. Entretanto, em sua busca pela dádiva, o escolhido escavou mais profundamente que devia a montanha de sua terra e encontrou algo que deveria permanecer oculto. Seus poderes foram aumentados, assim como sua ganância. E, ao invés de levar seu povo à glória, o escolhido conduziu-o à perdição e à destruição. E agora, com os poderes que conseguiu, o escolhido tornou-se uma ameaça, não só para seu povo, mas para o mundo como um todo.

_ E ele deve ser detido e punido! – o deus da justiça voltou a falar. – Entretanto, a promessa de um Deus não pode ser quebrada, portanto, Azgher não pode simplesmente retirar do mortal os poderes que ele recebeu como dádiva. Nenhuma condição foi imposta para o uso destes poderes, portanto, não há porque removê-los. Além disso, todos sabem que não podemos interferir nos assuntos dos mortais. A resolução deste problema cabe aos mortais.

_ Então não há o que fazermos aqui. Retornemos às nossas moradas para assistir ao que se sucederá, às gloriosas batalhas que surgirão em decorrência deste erro de Azgher! – outra voz trovejou no salão, ecoando igualmente por cada milímetro do lugar. Era Keen, o deus da guerra.

_ Eu concordo com isso! – riu o homenzinho no lado oposto a Khalmyr. Era Nimb, deus com caos. – Vamos deixar o Caos se espalhar e comemorar. Afinal, o Caos começou tudo isso, tirando a situação do controle de Azgher, então ele deve terminar isso. Ou não?

Um burburinho tomou conta do salão. Os deuses discutiam entre si. Alguns, como Hynnin e Ragnar, concordavam com Nimb e Keen. Outros, como Lena, Tanna-Toh, Marah e Allihanna, tinham certeza que o mortal deveria ser detido. Glórienn apenas desejava que seus filhos fossem poupados do sofrimento que poderia nascer daquilo tudo.

_ Silêncio!!! – ergueu-se uma voz acima das outras. Era Thyatis. – Vocês não sabem do que falam. Eu olhei para o futuro e só enxerguei ruína. Não apenas para os mortais, mas também para os deuses. O mortal em questão não se deterá em sua ilha. Irá avançar pelo mundo, desencadeando uma guerra de enormes proporções. Eu vejo que seus poderes aumentarão cada vez mais, à medida que ele avançar e conquistar aliados e nações. Ele se unirá à horda negra para devastar Arton e, quando a flecha de fogo for disparada, ele trairá e destruirá a Foice de Ragnar. A guerra, a destruição, a morte e o caos tomarão conta de tudo. E quando o mortal a quem chamam Teztal queimar todos os estandartes dos povos civilizados, ele irá de encontro ao mal rubro. E a ele o escolhido se unirá, para marchar em uma nova guerra, a última e decisiva guerra. A guerra contra nós. E eu vejo que nenhum dos aqui presentes, nem dos dois que não estão, mas cujas cadeiras permanecem à sua espera, nenhum de nós sobreviverá! Será o fim de tudo. Não haverá mais vida ou morte, caos ou ordem, guerra ou paz, luz ou escuridão, apenas um vermelho infinito reinará absoluto numa realidade onde nada do que há hoje existirá!

O silêncio tomou conta do salão. Todos sabiam que o que a Fênix dizia se tornaria real, sabiam que o que ela via era o que aconteceria, caso não intercedessem imediatamente. Então um dos deuses se pronunciou.

_ Um grande general sabe quando deve vencer uma guerra antes mesmo que a primeira batalha ocorra – era Keen. – O que faremos, então?

_ Eu vi o futuro. E vi que cinco mortais caminham agora ao encontro do escolhido! – disse Thyatis. – Como alguns de vocês sabem esses mortais são cinco filhos de Glórienn e seus caminhos se cruzarão e os levarão até onde está o humano chamado Teztal. Nenhum dos cinco possui grandes poderes no momento, mas todos têm enorme potencial e segredos ocultos deles próprios e poderão chegar a conquistar lugar entre os grandes de Arton. É possível que eles possam realizar a tarefa de parar as maquinações de Teztal antes que ele se torne poderoso demais.

_ Não podemos interferir diretamente, mas poderíamos guiar esses mortais para que eles cumpram a missão.O que acham? – perguntou Khalmyr.

_ Que seja feito! Eu elejo os cinco filhos de Glórienn, então, como meus escolhidos, para realizarem esta missão – era Azgher.

_ NÃO!!! – gritou a deusa dos elfos, com a aflição de uma mãe que projete um filho. – Não!!! Não é justo! Meus filhos já sofreram demais e vocês não fizeram nada para interferir, para ajudá-los! Não aceito que agora, por causa de um erro de Azgher, eles sejam usados por ele para fazer o seu serviço sujo!

_ Acalme-se Glórienn! – protestou Thyatis. – Não foi por erro de Azgher ou por ação do caos que seus filhos foram envolvidos nessa situação. Foi por algo maior e inexorável, foi pelo Destino. Era o destino de seus filhos serem escolhidos pelo Deus-Sol para realizarem esta tarefa. Eu olho para o futuro e vejo que isto é o que acontecerá.

_ Procure entender, irmãzinha – uma voz trovejou com doçura ao lado de Glórienn. – É necessário que eles façam isso, mesmo que venham a sofrer. Ou então não só os seus ou os meus filhos deixarão de existir, mas nós e tudo o que criamos desaparecerá para sempre. E, lembre-se, basta que você aceite minha proteção e eu protegerei os seus filhos – o deus com corpo taurino tentou acariciar a elfa. Já aos prantos, Glórienn recusou o afago de Tauron.

_ Então está decidido! Os cinco filhos de Glórienn serão guiados por Azgher nesta missão. E tudo retornará à ordem, como deve ser! – disse Khalmyr, levantando-se da mesa e dando a reunião por encerrada.

_ Esperem! Eu olho para o futuro, e vejo que os filhos de Glórienn, agora os Escolhidos de Azgher, não apenas cumprirão a missão, como também despertarão outro mal sobre Arton como conseqüência de sua demanda. Um mal adormecido há séculos, que os mortais chamam de o Destruidor de Mundos! – disse a Fênix.

_ Bastou um simples bater de asas de um inseto para criar uma gigantesca tempestade. Agora sim podemos assistir ao caos tomando conta de tudo! - comemorou Nimb.

_ Silêncio! Esse mal também deverá ser detido! E se os filhos de Glórienn forem os responsáveis pelo seu despertar, também deverão se responsabilizar por sua destruição! – Disse Khalmyr

_ NÃO!!! – gritou a elfa. – Isso é injusto, Khalmyr! O Destruidor de Mundos não! É crueldade jogar meus cinco filhos contra esse monstro! Não é justo!

_ Tem razão! Talvez seja uma tarefa muito dura para eles agora, e talvez continue sendo assim, quando se tornarem grandes. Mas, se conseguirem cumpri-la, receberão recompensas a altura de seus feitos no final! – respondeu o deus da justiça.

_ Mesmo assim! É muito cruel! Se eles tiverem que fazer isso, eu irei ajudá-los! – protestou novamente Glórienn.

_ Não pode! Sabe que não podemos intervir diretamente! – disse Khalmyr.

_ Tem razão, Khalmyr. Mas meus devotos podem. Eu entendo a dor de Glórienn, e irei ajudá-la e a seus filhos. Guiarei um de meus devotos para encontrá-los e auxiliá-los, fornecendo a maior das ajudas: conhecimento! – falou Tanna-toh.

_ Se interferir, velha, eu também o farei. Mandarei meus filhos avançarem sobre os de Glórienn. Isso equilibrará as coisas, da maneira como Khalmyr gosta! – rugiu Ragnar.

_ Eu também vou interferir. E de maneira mais direta. Há uma de minhas filhas naquela ilha. E se o Destruidor realmente despertar, ela precisará ser salva. Se eles a salvarem, eu os ajudarei como retribuição. Isso não violará as regras. – disse Allihanna.

_ Suas crias exóticas ainda trarão grandes problemas ao mundo. Eu vejo isso no futuro. Mas isso é discussão para outra ocasião. Quanto aos filhos de Glórienn, meus servos também estarão à disposição deles, quando precisarem. E eu vejo que irão precisar. Também olharei o futuro deles e o revelarei a Allihanna. Já que ela entrará em contato direto com os escolhidos, ela que lhes diga o que o Destino reserva lhes reserva! – falou Thyatis.

_ Pois então, se o futuro for revelado aos jovens escolhidos, eu pessoalmente irei providenciar que isso seja feito de forma indireta, através de enigmas. Atuarei ao lado de Allihanna para tornar as revelações enigmáticas. Afinal, antes de receberem tanta ajuda assim dos deuses, eles devem se mostrar dignos de recebê-la. Caso contrário, eles estariam trapaceando os deuses, e isto é algo que somente este humilde bufão tem o direito de fazer! – era Hynnin.

_ Hynnin está certo! Que os filhos de Glórienn sejam testados, então. Eu guiarei meus seguidores e os testarei em combate! – bradou Keen.

_ E eu testarei e avaliarei a força dos seus filhos, Glórienn. Se eles se mostrarem fortes, os ajudarei. Mas se forem fracos, serão escravizados e protegidos por meus filhos! – era Tauron.

_ Também quero testá-los. Veremos se eles serão capazes de confrontar meus filhos! – rugiu Megalokk.

_ E em meus domínios eles também serão testados e lá também encontrarão recompensas e aliados caso sejam aprovados no teste! – disse Oceano.

_ Pois eu os ajudarei. Há entre eles pelo menos um que é meu devoto. Minha dádiva e meus seguidores estarão à disposição para ajudá-los. – era Wynna.

_ Não irei interferir. Apenas observarei e medirei a coragem dos escolhidos. Que eles vençam com honra os desafios que receberão, e que sua recompensa seja igualmente grande. – dessa vez foi Lin-Wu quem se pronunciou.

_ Também me manterei neutro. A única prova que imponho a esses jovens mortais é a missão que receberão! Mas, se um dia os escolhidos se perderem, minha luz servirá para lhes mostrar o caminho! – disse Azgher.

_ E minhas trevas irão colocá-los à prova! – completou Tenebra.

_ Eu lhes darei a maior das dádivas, quando tiverem cumprido a missão. A vida. Muitas vidas novas virão deles! E zelarei para que suas próprias vidas não sejam tiradas durante a jornada! – dessa vez era uma voz de menina. Lena, a deusa da vida.

_ E eu apenas rolarei meus dados. Se sair número par, eles terão muita sorte. Se o resultado for ímpar, estarão num dia de azar! – era Nimb, rindo.

_ E eu levarei paz aos seus corações no momento em que mais precisarem. Pois suas provações serão grandes e antes do fim eles precisarão de consolo! – agora era Marah, a deusa da paz.

_ E eu olho para o futuro e vejo que a vontade de Sszzaas também irá se manifestar. Os seguidores do grande Corruptor atuarão espalhando sua intriga e dificultando a jornada dos escolhidos! – Thyatis novamente tomou a palavra, deixando os deuses apreensivos.

_ E eu serei justo, como sempre. E zelarei para que cada provação tenha em contrapartida um auxílio de igual intensidade. E, como sei que Valkaria também irá querer ajudá-los, já que são aventureiros como ela, guiarei os filhos da deusa da ambição para fornecerem ajuda aos escolhidos! – era Khalmyr.

_ Há um dos filhos de Valkaria cujo caminho cruzará com o dos escolhidos. Deixem-no sob minha responsabilidade. Ele é um de meus devotos, assim como de Oceano, e eu o encaminharei ao encontro dos escolhidos para ajudá-los! – disse Wynna.

_ Também há outro humano que eu me encarregarei de guiar, além daquele que me serve. Ele é um guerreiro que teve uma vida sofrida e merece participar dessa jornada e receber uma recompensa por todo o sofrimento que teve e terá daqui por diante! – falou a deusa do conhecimento.

_ Guiarei um dos filhos de Valkaria o qual é meu servo. Seu caminho encontrará o dos escolhidos e ele lhes prestará auxílio. E um dos meus próprios filhos será encaminhado para ajudá-los e instruí-los. E outros que me servem ou que sejam filhos de Valkaria, como um humano cuja sina agora depende da ajuda dos escolhidos, serão guiados por mim em auxílio dos filhos de Glórienn. Que seja feito então! Que os Escolhidos de Azgher, os filhos de Glórienn, cumpram a missão que lhes é dada! Que eles destruam o mal em ascensão e que destruam também aquele que eles despertarão! Que os deuses os testem em sua jornada até o final da demanda, e os ajudem de maneira justa! E, no final, que eles recebam desses mesmos deuses a justa recompensa por seus préstimos! Que seja escrito, e que se cumpra! – e Khalmyr encerrou a discussão.

_ Está certo, então! Que meus filhos sejam usados e testados por vocês, como quiserem, pois eles são a perfeição e no final terão de volta tudo aquilo que perderem! – os protestos e as lágrimas cessaram. Dessa vez Glórienn sorria. Em seus olhos havia agora apenas esperança.

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