janeiro 18, 2007

Campanha B - Capítulo 5 – Servo das trevas

Capítulo 5 Servo das trevas

Início da noite. Susrak Delzhan despertava finalmente após um longo dia de sono. O jovem rapaz alongou seu corpo e se levantou. Fez uma refeição rápida e saiu do templo onde estivera alojado todo o dia. Agradeceu ao anão que o acolhera na saída do templo e ambos trocaram uma saudação em louvor a Tenebra, típica entre os sacerdotes da deusa das trevas.

Susrak era um clérigo, um sacerdote que servia a Tenebra, a deusa das trevas, senhora da escuridão e criadora de todas as criaturas que nela habitavam. Tenebra era uma deusa temida e odiada pela maioria da população de Arton. Não que Tenebra fosse uma deusa maligna ou coisa parecida, tampouco ela era benigna, mas, o que assustava as pessoas era o fato de ela, segundo os teólogos, ser a responsável por criações bizarras, que ameaçavam a segurança das pessoas, como os mortos vivos, os trogloditas, os licantropos, e outras criaturas noturnas e subterrâneas e noturnas. Por esse fato, era comum que pessoas de má índole decidissem servir à senhora da noite, aumentando ainda mais o temor da população. Mas, também havia pessoas boas que a serviam, e que a defendiam exaltando o lado positivo das criações da deusa. Segundo esses clérigos, Tenebra havia criado os mortos-vivos para oferecer desafios para os aventureiros de Arton, não para prejudicar as pessoas do mundo. Também, argumentavam eles, a noite, sempre cheia de perigos, seria uma bênção da deusa para aplacar a ira das chamas de Azgher, o deus sol. Mesmo com a defesa a seu favor feita por seus sacerdotes, Tenebra ainda sim era temida e até mesmo odiada. O culto a ela era evitado pelas pessoas, e até mesmo proibido, na maior parte dos reinos. Assim, o culto a Tenebra sobrevivia ironicamente às escuras, oculto da população em templos secretos e conduzido na calada da noite por seus sacerdotes, fossem eles maus ou bons, e por Susrak.

Susrak era também um servo da deusa da escuridão, mas era diferente do que se esperava de um servo das trevas. Ao contrario do que diria a maioria das pessoas, ele não era mau, mas, tampouco era uma pessoa boa, principalmente no que se referia à sua sanidade. Um fato trágico em seu passado, levara-no a tornar-se aquilo que muitos chamariam de louco. Fato esse, que o jovem sacerdote pretendia reverter algum dia.

Susrak nascera em Valkaria, a grande capital. Morava com seus pais e sua irmã e, ainda menino, conheceu a famosa cidade de Triumphus, no reino de Hongari. Foi em Triumphus, a lendária cidade atacada pelo Moóck e encantada com a bênção/maldição que dava a quem ali morresse o poder da imortalidade, que Susrak teve contato com a ordem de Thyatis, o deus da ressurreição e da profecia. Ficou fascinado com o poder de prever o futuro de seus clérigos, com a imortalidade de seus paladinos e com todas as histórias fantásticas que eles contavam.

O garoto passou sua infância com aquelas histórias na sua mente, e nunca mais as esqueceu. Talvez, se o destino não tivesse sido tão cruel, ele até teria se tornado um servo da grande fênix. Mas, o destino decidiu ser cruel, e Nimb rolou os piores dados possíveis. Um dia, quando Susrak retornava para casa no fim do dia, após brincar com os amigos, encontrou seus pais aos prantos. Sua doce e querida irmã havia sido assassinada por assaltantes.

Sua irmã foi sepultada, e os assassinos nunca foram encontrados. O tempo foi passando, e o desejo de vingança foi crescendo dentro de Susrak, até que um dia um fato mudou sua vida completamente. Quando voltava de uma viagem, e estava perdido no meio de uma campina, Susrak teve uma visão. Ele viu a fênix de fogo, Thyatis, erguer-se das chamas diante dele, trazendo com ele a sua irmã querida. Mas, a irmã de Susrak era agora uma morta-viva, um zumbi, desprovido de mente e vontade própria. Talvez a fixação pela morte trágica da irmã, bem como o fascínio que possuía pelas histórias dos sacerdotes de Thyatis, tivessem influenciado sua mente. Talvez fosse apenas um delírio, causado pelos cogumelos ingeridos momentos antes por ele. Talvez até, fosse tudo real tal qual ele acreditava. Susrak entendeu que ele havia sido escolhido por Thyatis. Escolhido para trazer sua irmã do mundo dos mortos, transformada numa morta-viva. E, para fazer isso, tal qual a grande fênix havia lhe ordenado, Susrak decidiu tornar-se seguidor daquela que criara os mortos-vivos, Tenebra. Assim, ele se tornou um clérigo da deusa das trevas e acreditava que com o poder concedido por ela, ele um dia traria sua irmã de volta dos mortos. Mais, Susrak acreditava que desta forma, sua irmã retornaria evoluída, já que os mortos-vivos não envelheciam nem adoeciam. Ela seria imortal. Assim, para ele, tornar-se um morto-vivo era uma forma de evoluir, ascender para uma forma de existência mais perfeita. Susrak, então, decidiu que queria transformar todas as pessoas em mortos-vivos, inclusive ele próprio. Na mente distorcida do clérigo pulsava o desejo de evoluir para a forma mais perfeita criada por sua deusa, um tipo de mago morto-vivo, o lich.

Lichs eram mortais que, por vontade própria, transformavam-se em criaturas mortas-vivas. Mas, diferente dos mortos-vivos comuns, como zumbis, esqueletos, fantasmas e outros, o lich conservava sua mente intacta, e com ela todas as habilidades que possuía em vida. Para heróis aventureiros, um lich era uma dos piores e mais perigosos inimigos que poderiam existir. Para Susrak, era a ascensão para uma forma mais perfeita. Agora, após viajar por um longo período, ele estava finalmente de volta à sua cidade natal para cumprir seus objetivos. Parara para descansar em um templo erguido secretamente em homenagem à sua deusa por uma comunidade de anões que a veneravam. Acreditavam os anões terem sido criados pela união entre Tenebra e Khalmyr, o deus da justiça. Por isso era comum que os anões a adorassem no reinado, mesmo que o culto a ela fosse discriminado. Susrak passou todo o dia no templo, dormindo, já que os servos de Tenebra não podiam jamais serem tocados pelos raios do sol, eterno rival da deusa da noite, sob a punição de perderem todos os seus poderes. Quando a noite finalmente chegou, Susrak decidiu que era o momento de ir procurar seus pais e deixou o templo. Mas, os dados de Nimb e as profecias de Thyatis mostravam que ele não chegaria ao seu destino naquela noite. Os deuses haviam lhe reservado um destino diferente.

Susrak caminhava tranqüilamente pelas ruas da cidade, quando passou em frente à estátua de Valkaria, no centro da cidade. Parou por alguns instantes e começou a olhar para a fantástica obra, admirando-a, como há muito não fazia. Veio-lhe a mente uma porção de lembranças de momentos felizes que passara em frente àquela estátua ao lado de sua irmã querida e seus pais. Lembrou-se também de outras coisas, entre elas, o mendigo louco, Tilliann, e os muitos rumores que cercavam a estátua. Lembrou-se especialmente de um boato, uma lenda, que dizia que a estátua era capaz de drenar os poderes mágicos da pessoa ou objeto que a tocasse, ainda que por um instante. Agora que havia sido ordenado clérigo de Tenebra, Susrak tinha condições de provar se a tal teoria era verdade.

Havia um punhado de ratos perto dali, deliciando-se com um farto banquete, restos de comida abandonados pro algum turista que estava na cidade para as comemorações do dia da Grande Batalha. Susrak aproximou-se silenciosamente dos animais e agarrou um deles pelo rabo. Enquanto o pequeno animal se debatia tentando fugir, Susrak invocou o nome de Tenebra e conjurou uma magia sobre ele, uma magia simples de proteção. Depois, atirou o pobre rato com toda força na direção da estátua. O animal se chocou com grande violência na rocha e caiu no chão, morto.

Susrak pegou o animal do chão e, como não sentiu nenhuma aura mágica nele, concluiu que a tal lenda era verdade. A estátua de Valkaria havia sugado do rato a magia conjurada por Susrak. Mas, ele havia chegado a essa conclusão apenas por dedução, sem usar meios mágicos para confirmar seu teste. Então, ele resolveu pedir ajuda aos transeuntes.

_ Eu preciso de um mago! Magos! Magos! Aproximem-se! Eu tenho nas minhas mãos a prova definitiva de que a estátua de Valkaria é capaz de drenar poderes mágicos! – gritava Susrak, exibindo o rato em sua mão.

Aos poucos uma pequena multidão foi se formando para ouvir o que aquele homem vestido de branco tinha para dizer. As pessoas ouviram o discurso do clérigo e ficaram todas fascinadas ao ver que a “estátua tinha tirado a vida do rato”. Saíram conversando uns com os outros, debatendo a prova apresentada por Susrak e criando novas teorias e rumores sobre a estátua. Susrak ficou ali, sozinho com o rato morto na mão, sem que nenhum mago passasse se prontificasse a usar seus poderes para detectar se a magia do clérigo ainda estava ativa no animal. Desconcertado, Susrak guardou o pequeno cadáver em sua bolsa e prosseguiu em sua insana jornada.

Mais alguns passos e novamente ele parou, dessa vez admirado com uma das criações de sua deusa, um esqueleto. A poucos metros dele, havia uma carroça deslocando-se vagarosamente, que transportava uma pesada carga. Era uma carroça de fundo plano de madeira, e laterais compostas de grades de metal, uma jaula. Dentro da jaula, havia uma criatura gigantesca, de formato humanóide e olhos vermelhos e brilhantes como duas chamas. Era um esqueleto. Talvez fosse os restos mortais de um troll ou um ogro, que havia sido reanimado magicamente por algum mago, ou coisa parecida. Susrak olha para aquilo admirado. Um esqueleto sendo transportado por quatro halflings, no meio da cidade. Só poderia ser um sinal, uma mensagem de Tenebra para ele.

_ Irmãos! Irmãos! Em nome de Tenebra eu vos saúdo, meus irmãos! – gritava Susrak, empolgado, correndo em direção aos halflings, até que os pequeninos parassem a carroça e lhe dessem atenção.

_ Que irmão o quê! Olha pra mim, rapaz e veja se eu tenho cara de quem tem um irmão do seu tamanho! – respondeu rispidamente um dos pequeninos que caminhava ao lado da carroça, armado com uma lança e uma clava.

_ Sim, irmãos sim! Irmãos de fé! Somos todos servos de Tenebra, nossa deusa! – insistia o clérigo.

_ Que nossa deusa nada! Eu rezo é pra Hynnin! Não tenho nada a ver com Tenebra! - retrucou o halfling, apontando a lança na direção do humano para afastá-lo antes que ele se entusiasmasse demais e resolvesse abraçá-lo.

_ Mas...você não é um servo de Tenebra? Então, por que está transportando esse esqueleto? Por acaso vai levá-lo para algum clérigo de Tenebra? – perguntou o jovem, um pouco decepcionado.

_ Não! Não somos clérigos coisa nenhuma, principalmente de Tenebra! Nós estamos transportando essa coisa ai para o professor Vladislav Tpish da Academia Arcana! Isso é uma encomenda pra ele! – respondeu secamente o halfling.

_ Ah! Entendi! Eu achei que vocês fossem clérigos, mas estão apenas transportando uma encomenda pro Vladislav! Tchau! – Susrak compreendeu a confusão que fizera, e começou a se explicar, mas, no meio do seu discurso, simplesmente deu adeus aos halflings. Os quatro pequeninos olharam, confusos, para o rapaz, e decidiram que era melhor se afastarem daquele tipo estranho. Afrouxaram as rédeas e os dois cavalos começaram a andar, arrastando lentamente a pesada carroça. Enquanto ela se afastava, Susrak observava atentamente o esqueleto preso lá dentro. A criatura também fitava os olhos do clérigo. Então, Susrak pensou “eu quero ele”. Ergueu seu símbolo sagrado na direção da criatura, um medalhão em com a forma de uma estrela negra de cinco pontas, e evocou o mais uma vez o nome de sua deusa.

O esqueleto começou a rastejar dentro da jaula, indo na direção de Susrak, fascinado pelo seu medalhão. Quando chegou até a grade, e percebeu que não tinha mais como se aproximar, a criatura se levantou abruptamente, levando consigo o teto da jaula, arrebentando-a por completo. O monstro saiu de sua jaula e correu na direção do clérigo, parando diante dele. Susrak ordenou que a criatura se abaixasse, para que ele alcançasse seu rosto esquelético, e começou a acariciá-la como se brincasse com um animalzinho.

Imediatamente, o pânico e o caos tomaram conta das ruas. As pessoas que por ali passavam ficaram desesperadas e começaram a correr feito loucas, gritando e chocando-se umas nas outras, enquanto tentavam fugir do monstro que estava á solta. O tumulto atraiu a atenção de pessoas que estavam em tavernas e casas próximas, que saíram às ruas para ver o que estava acontecendo. Susrak, não entendia o porquê de tanta confusão.

­_ Calma! Não é culpa dele! Ele não vai causar pânico! Não precisam correr! – tentava explicar o rapaz, causando ainda mais pânico e confusão.

_ Pula! – ordenou Susrak. A criatura obedeceu imediatamente, dando um pequeno salto. – Não! Pula lá na carroça! – corrigiu o atrapalhado clérigo, ordenando de forma desastrosa que o monstro retornasse para sua jaula, onde os halflings observavam atônitos. O esqueleto deu uma corrida curta e saltou sobre a carroça, destruindo-a, afundando-a no chão e erguendo os pobres cavalos que estavam presos a ela. – E esse foi o show desta noite! Espero que tenham todos gostado! Caso tenham gostado, estou aceitando doações! Obrigado! Obrigado! Quem gostou, por favor, doe cinco tibares de prata, para que este velho clérigo possa se transformar em um lich! Obrigado,obrigado!!! – Susrak fingiu ter a situação sob controle, para minimizar o caos que havia se instalado na região. Mas, como ninguém lhe deu ouvidos, decidiu escapar dali o mais rápido possível. – Tchau!!! – disse ele, acenando para o esqueleto. Deu um passo para trás, atraindo a atenção da criatura que demonstrava clara intenção de segui-lo. – Não! Fique ai! Senta! – ordenou ele. O monstro sentou-se como mandado. Sentou-se em cima dos cavalos que puxavam a carroça, matando os pobres animais esmagados. Percebendo o desastre que havia provocado, ele decidiu sair dali o mais depressa possível. Mas, já não havia mais tempo para isso, Susrak foi abordado pelos oficiais da milícia que estavam por perto, antes que pudesse dar mais um passo.

­_ Eh...boa noite! Gostaram do show? – perguntou Susrak aos soldados, tentando ludibriá-los.

_ Show? Que show? Chama todo esse caos que você causou de show? – respondeu o oficial, secamente.

_ Psiu...! Não espalhe, mas tudo foi um acidente! Não foi show não, foi um acidente! – sussurrou o clérigo, olhando ao redor, como se quisesse esconder a verdade das pessoas que nem ali estavam mais.

_ Acidente? Sei...vamos esclarecer isso com a gente lá no quartel! – ironizou o soldado.

_ Vocês não gostaram? – voltou a perguntar Susrak.

_ Como assim gostamos? Do que você está falando, rapaz?

_ Ora essa, eu é que pergunto! Um Show tão maravilhoso! Não há como não terem gostado! Duvido que algum de vocês seja capaz de fazer igual!

_ Causar pânico na população como você fez? Claro que não fazemos! Estamos aqui para manter a ordem, não para espalhar o caos! Venha conosco para o posto da milícia imediatamente! – gritou o soldado, já irritado com a insanidade de Susrak.

_ Espere ai! Vocês querem me prender?! Não podem fazer isso! Conversem com Vladislav Tpish! Ele vai garantir que...garanto que ele vai gostar!

_ Gostar do que? De vê-lo preso? Nós também vamos adorar isso! Agora deixe de enrolação e venha com a gente! – disse o oficial, com um sorriso sarcástico no rosto e fazendo um gesto para que os soldados prendessem susrak.

_ Esperem! Eu peço que vocês falem com Vladislav primeiro! Aquele esqueleto era uma encomenda dele! Ele vai querer saber quem fez aquilo! Não podem me prender! – Susrak começou a ficar desesperado ao ver que os soldados o cercavam.

_ Ah! Encomenda do Vladislav, o professor? Ele vai adorar saber quem destruiu a carroça e matou os cavalos dele! Você vai contar essa história, direitinho, mas lá na cadeia! Agora vamos! – completou o oficial. E Susrak foi preso e levado para a cadeia.

No posto da milícia, Susrak foi algemado e todos os seus pertences foram retirados pelos guardas. O jovem e atrapalhado clérigo foi atirado num banco para, ao lado de outros criminosos, aguardar até que fosse chamado para prestar depoimento e então ser definitivamente preso. Mas, ele não desejava permanecer ali, nem via motivos para isso, já que em sua confusa mente, não tinha feito nada de errado.

_ Eu quero ir embora! Vocês não podem me deixar aqui! Chamem Vladislav Tpish! – gritava o rapaz, inconformado com sua condição.

­_ E chama minha mãe! Traz ela aqui que ela vai soltá nóis dois! – gritou em seguida um bêbado que dividia o banco com Susrak. O bêbado encostou seu corpo alcoolizado em Susrak, e o clérigo viu ali uma oportunidade de conseguir um aliado.

_ Ei amigo! Tenho uma proposta a lhe fazer! Por acaso você não gostaria de obter a imortalidade? – indagou o clérigo, obviamente pensando em obter um voluntário para ser transformado em morto-vivo.

_ Eu prefiro um vinho! Hic! Cê num tem um ai? – respondeu o homem, soluçando e tropeçando nas palavras.

_ Vamos fazer o seguinte! Quando a gente for embora daqui, você vai comigo até o cemitério! O que você me diz? – insistiu Susrak. Uma pessoa comum que observasse a conversa, teria sérias dúvidas sobre qual dos dois estava sóbrio.

_ Emitéio? Issé vinho? É bom?

_ Sim, é muito bom! Vinho élfico! – vendo que era possível conversar de forma “racional”, o rapaz decidiu fazer o jogo do bêbado para convencê-lo de forma mais fácil.

_ Óia! Nois vamu lá tomá um emitéio! Vambora!!! – gritou o homem embriagado para os guardas, levantando-se do banco e puxando Susrak para ir com ele. Rapidamente, uma multidão de soldados cercou o homem e pôs-se a espancá-lo até que ele caísse, inconsciente.

_ Calma! Calma! Pra que toda essa violência? Isso é absolutamente desnecessário! Se desejarem, eu posso controlá-lo facilmente sem precisar machucá-lo! – disse Susrak, tentando mostrar-se útil aos soldados.

_ Olha rapaz! É melhor você se controlar, antes que nós resolvamos controlar você machucando-o! – gritou um dos soldados, irritado.

_ Calma, está bem, eu fico quieto! Mas, e peço que chamem Vladislav Tpish aqui! Melhor! Não precisam nem chamá-lo aqui! Apenas digam a ele o que está acontecendo! Tenho certeza que ele ficará interessado! Eu tive uma relação com ele! – insistiu ele, encolhendo-se no banco para não ser espancado também. Os soldados se entreolharam, confusos, enquanto carregavam o corpo desmaiado do bêbado para uma cela.

_ Ora! Fique quieto ai e espere até o sargento chamar você! E mantenha essa boca fechada! – gritou o soldado, apontando o dedo ameaçadoramente para Susrak. Sem outra opção, o clérigo finalmente se calou e pôs-se a esperar, decepcionado, enquanto lá fora as pessoas aproveitavam a noite e os prazeres que ela proporcionava. Era noite quente de final de verão que apenas acabava de começar. E, sem dúvida alguma, não seria uma noite comum como as outras, era, enfim, uma noite promissora.







janeiro 12, 2007

Campanha B - Capítulo 4 – Sangue demoníaco

Capítulo 4 Sangue demoníaco

É verdade que Arton era um mundo cheio de heróis, mas também cheio de perigos para esses heróis enfrentarem. E é verdade também que muitos desses perigos não eram nativos de Arton. Eles vinham de outros planos, outros mundos, alguns já conhecidos pelos maiores estudiosos do mundo, outros nunca antes sonhados pelos mortais e até pelos próprios deuses. Um desses inúmeros perigos que ameaçavam a vida em Arton eram as criaturas demoníacas, vindas de dimensões repletas de maldade, também conhecidas como demônios. Os demônios eram criaturas maléficas, cujo único objetivo era praticar a maldade com quem quer que fosse. Estudiosos da grande Academia Arcana escreviam enormes tratados sobre eles, os classificavam por tipo, Baatezu, Tanari e outros. Mas, o principal a respeito dessas criaturas era do conhecimento de todos, sua maldade sem limites. Embora tivessem outros problemas menores, mas mais próximos com que se preocupar, a maioria das pessoas em Arton temia os demônios. Mas, havia aqueles que não os temiam, tanto por serem tão cruéis quanto os próprios demônios, quanto por quaisquer outras razões. Algumas pessoas más chegavam ao cúmulo de venerar os demônios como deuses, firmar pactos sombrios com eles e até mesmo usar magia para tornar-se um deles. Outros, apenas os utilizavam como fonte de pesquisa ou ajuda durante algum combate, trazendo-os temporariamente para Arton através de magias de invocação. Fosse por convocação de algum mago, ou por vontade própria, vários demônios circulavam à solta pelo mundo, incógnitos em covis escondidos, ou sob disfarces. E se existia um local onde os demônios fossem mais numerosos, esse lugar só poderia ser o reino de Wynnla.

Wynnla era o reino dos magos e feiticeiros. Um lugar místico, onde a magia se comportava de formas estranhas, assustadoras até. Ninguém sabia explicar a razão, mas naquele pequeno reino a leste do continente, existiam locais onde a magia funcionava de maneira muito mais forte que o habitual. Em outros, os efeitos mágicos eram simplesmente invertidos, geralmente voltando-se contra o conjurados. E, havia outros lugares, onde a magia simplesmente não funcionava. Outros fatos estranhos ocorriam ocasionalmente, inclui-se ai chuvas de rum e outras coisas bizarras. Justamente por causa desses estranhos fenômenos que o reino de Wynnla atraia tanto o interesse de magos e outros estudiosos. Durante sua colonização, o reino foi invadido por caravanas de magos, feiticeiros, pesquisadores diversos, em busca de respostas para os mistérios que aquele lugar guardava. O tempo passou e os que tinham ido atrás de respostas terminaram por se fixar e povoar o reino. Assim, Wynnla era o lugar com maior concentração de magos em todo o mundo. Mantos e chapéus pontudos eram o tipo de roupa mais comum no lugar e pelas ruas era comum ver golens, mortos-vivos e outros tipos de ajudantes bizarros, inclusive os demônios.

Os magos e outros usuários de magia costumavam invocar demônios, fosse para servi-los em combate, fosse para fazer-lhes perguntas, ou para simplesmente escravizá-los. Wynnla era o lugar onde existia o maior número deles, trazidos a Arton pelos conjuradores que viviam naquele lugar. Embora os magos controlassem as criaturas invocadas por eles, algumas vezes, principalmente em Wynnla, a magia saia do controle, e a criatura acabava por se libertar da magia e fugir. Esses demônios errantes buscavam retornar para seu próprio mundo, mas alguns optavam por permanecer em Arton e encontrar ali o seu lugar. E, assim como qualquer criatura viva, eles buscavam alguém para se relacionar, alguém com quem pudessem procriar, fosse forçadamente, fosse por livre e espontânea vontade. E da bizarra união entre demônios e humanos, elfos, anões e outros, nasciam os meio-demônios, também conhecidos como sulfure.

Por sua herança demoníaca, os sulfure geralmente eram criaturas solitárias, rejeitadas e desprezadas por todos que os cercavam. Suas vidas nunca tinham paz, sempre sendo expulsos dos locais onde se fixavam, sempre sendo caçados quando suas identidades eram descobertas, vivendo aqui e ali como eternos renegados. Muitos herdavam de seus pais demoníacos também a maldade e não se importavam, aproveitando o desprezo para tornarem-se ainda mais malignos. Outros, traziam em seus corações a bondade herdada de sua ascendência não demoníaca, e buscavam coexistir pacificamente com as outras criaturas. Assim era a vida de Kallas.

Tendo nascido meio-demônio, Kallas buscava seu lugar no mundo. O preconceito das outras raças fez com que ele ainda jovem se lançasse ao mundo, abraçando uma vida de aventuras e perigos. Nativo de Wynnla, Kallas aprendeu desde cedo a manipular a magia, tornando-se um competente mago. O gosto pela magia fez dele também um pesquisador. Viajando de vila em vila, o jovem sulfure buscava manter sua ascendência demoníaca oculta, bem como aumentar seu conhecimento. Kallas percorreu grande parte do reino de Wynnla, até decidir que aquilo não bastava para ele. Desejava conhecer mais do mundo. Desvendar seus mistérios, adquirir conhecimento e viver aventuras. Assim, ele abandonou seu reino natal e decidiu viajar por Arton. O primeiro destino de sua viagem foi nada menos do que a capital de todo o mundo conhecido, Valkaria.

Kallas chegou a Valkaria no décimo dia do quinto mês, 1398 anos após a lendária chegada dos elfos a Lenórienn. O meio-demônio já tinha visto muitas coisas impressionantes em sua curta vida. Mas, aquele lugar era diferente de tudo que ele conhecia. Valkaria era imensa, fantástica. Um lugar cheio de possibilidades. Um lugar a ser explorado, desvendado.

Kallas caminhou durante toda a manhã, conhecendo lugares, conversando com as pessoas, adquirindo conhecimento. Descobriu que naquele lugar poderia encontrar parte do que busca em sua vida. Valkaria tinha muitas pessoas de todos os tipos. Não seria difícil para ele encontrar ali alguém que não se importasse com sua porção demoníaca. Não seria difícil encontrar pessoas que aceitassem se juntar a ele para viajar pelo mundo e ajudá-lo a encontrar o conhecimento que ele tanto desejava. Conhecimento, este, que talvez estivesse ali mesmo, esquecido nas muitas bibliotecas da cidade.

Sim, bibliotecas. Valkaria possuía muitas delas, mantidas em sua maioria pela ordem de Tanna-toh, a deusa do conhecimento. Era do saber de todos que os servos da também chamada Mãe da Palavra eram proibidos de ocultar qualquer conhecimento. Jamais podiam se recusar a responder uma pergunta, e deveriam fazê-lo sempre da melhor forma possível. Levar a sabedoria a todas as criaturas, esse era o dever dos clérigos de Tanna-Toh. Assim sendo, esses sacerdotes assumiam a responsabilidade de alfabetizar as pessoas em Arton e de disponibilizar o saber para todos. Muitas bibliotecas do mundo eram criadas e administradas por essa ordem, levando o conhecimento a todas as pessoas de Arton.

Kallas decidiu aproveitar a boa vontade dos clérigos de Tanna-Toh e dirigiu-se a uma dessas bibliotecas. Lá ele passou todo o restante do dia, concentrado em suas pesquisas. Tratados de magia, livros sobre mecânica e outros se empilhavam aos montes sobre a mesa ocupada por ele. Kallas permaneceu ali, lendo e fazendo anotações, até que a noite finalmente chegou. Uma clériga pediu gentilmente que ele se retirasse, para que ela pudesse fechar o templo e descansar, e convidou-o a voltar no dia seguinte.

Kallas levantou e esticou seu corpo, fazendo seus ossos estalarem. Levantou-se da cadeira e agradeceu pela hospitalidade da clériga. Deixou uma pequena doação em ouro para a manutenção da biblioteca e partiu.

Kallas caminhava pelas ruas de Valkaria, observando tudo com curiosidade. Andou várias quadras, seguindo a direção para onde rumava a maioria das pessoas. Seu desejo por aumentar seu conhecimento, o levava para onde havia grande concentração de pessoas, para onde certamente haveria coisas interessantes para se ver.

Finalmente chegou a uma larga avenida onde uma pequena multidão se formava diante da gigantesca estátua da deusa que dava nome à cidade. Kallas passou pela multidão e seguiu adiante, ouvindo rumores estranhos sobre a estátua, algo sobre ela supostamente drenar o poder mágico de pessoas e objetos. Temendo ficar sem sua mágica, Kallas decidiu afastar-se daquele monumento rapidamente.

Dobrou uma esquina antes de passar em frente ao palácio imperial, sede do governo do reino. E, encontrou uma nova multidão, dessa vez dispersando-se desesperadamente, gritando enlouquecidamente, até que a ruela ficou praticamente deserta. Diante dele havia um homem, vestido com uma túnica branca, que parecia brincar com um gigantesco esqueleto animado por magia. Kallas sorriu, e teve certeza que num lugar tão exótico como aquele, com todas aquelas excentricidades, ele finalmente encontraria o que procurava. Olhou ao redor e viu uma taverna movimentada, pra onde muitas pessoas retornavam após verem o homem brincando com o morto-vivo. Dentre as pessoas que entravam na taverna, a presença de um enorme minotauro chamou a atenção do mago. Era um humanóide alto e forte, com grandes músculos e que portava uma enorme espada de duas mãos. Com certeza, deveria ser um aventureiro, e aquela taverna deveria ser um reduto deles. Aventureiros, era isso que Kallas precisava. Pessoas que tivessem informações sobre mistérios e tesouros, e, principalmente, sobre conhecimentos perdidos, esquecidos em tumbas e templos abandonados. Conhecimentos que Kallas pretendia adquirir e dominar, para assim se tornar um grande e poderoso mago.

Assim, Kallas também entrou na taverna Olho de Grifo, uma das mais famosas de Valkaria. Atravessou todo o salão, ocupado por bêbados, criminosos, pessoas de boa índole, prostitutas e, esperava ele, aventureiros. O mago olhava cada pessoa dentro do estabelecimento, perdeu alguns segundos lendo um punhado de avisos que estavam pregados em uma parede, e sentou-se num banco, diante do balcão, onde um taverneiro recebia os pedidos de seus clientes. Kallas ficou ali, aguardando até ser atendido pelo homem que parecia ocupado e distraído enxugando uma caneca com um pedaço de pano velho. Ficou ali, aguardando por uma oportunidade de conversar com algum aventureiro, até que a oportunidade finalmente veio, na forma de goblins.

janeiro 10, 2007

Campanha B - Capítulo 3 – A exilada

Capítulo 3 A exilada

Era o fim da tarde quando Serena atravessou a muralha e adentrou na cidade de Valkaria. Cansada, após uma longa viagem, aquela imensa cidade era o primeiro local “civilizado” que a jovem elfa via há horas. Serena caminhava pelas ruas pavimentadas da metrópole, desviando das muitas pessoas que circulavam por elas naquele dia. Ao longe ela podia ver a imensa estátua da deusa Valkaria, imponente e magnífica, mas também solitária. Diferente dos turistas ocasionais, e até mesmo de muitos dos moradores do local, Serena não estava nem um pouco admirada com aquela obra gigantesca. Nem mesmo a cidade em si, com toda sua variedade cultural e racial, com todas as suas lojas exóticas, seus templos, suas ruas iluminadas, nada disso a impressionava.

Sim, para Serena aquele local era completamente sem graça, desagradável até. Em parte isso se devia ao fato de ela estar acostumada a viver longe das cidades. Serena era uma caçadora, ou, como preferiam dizer os aventureiros e mercenários, uma ranger. A jovem passava seus dias em meio à natureza, percorrendo as matas e bosques, nadando nos rios, pescando, caçando e coletando seu próprio alimento. Já estava desacostumada com a vida da cidade, e estar ali, naquele ambiente populoso, a fazia sentir-se pouco à vontade.

Mas, não era somente a preferência por lugares mais “selvagens” que a fazia sentir-se daquele jeito. Para Serena, aquela cidade que todos, especialmente os humanos, tanto falavam e admiravam não passava de um lugar cinzento, sujo, distorcido. Embora estivesse há alguns minutos percorrendo uma região nobre da cidade, para ela as ruas pareciam imundas e mal-cheirosas. Os prédios tinham uma arquitetura que lhe feria os olhos. Além disso tudo, as ruas estavam tomadas pelos ignorantes e gananciosos humanos, criaturas que não se importavam nem um pouco em avançar por cima do mundo como uma nuvem de gafanhotos faminta, devastando tudo o que encontrasse em seu caminho. Além deles, existiam os sempre alegres e simpáticos halflings, mas também os sempre rudes e estúpidos anões. Mas, o que mais a incomodava naquele lugar, era a presença abundante dos goblins. Essas pequeninas e ignorantes criaturas eram cidadãos de segunda classe em todo o território do reinado, mas eram cidadãos e como tal gozavam dos mesmos direitos que outras criaturas possuíam. Trabalhavam em serviços braçais ou como serviçais e, freqüentemente, muitos deles se tornavam criminosos. Serena irritava-se ao ver aquelas criaturas que ela tanto odiava circulando livremente pelas ruas da cidade e, em alguns casos, sendo tratados melhor do que os se sua raça. Era certo que Valkaria era uma cidade próspera, viva e pulsante, mas, para Serena, aquele era um lugar decadente, imundo e repugnante, muito diferente de sua amada e saudosa Lenórienn.

Serena era, assim como boa parte dos elfos que restavam em Arton, uma exilada. Os elfos, outrora uma civilização poderosa e próspera, haviam sido recentemente massacrados e derrotados por uma horda de goblinóides chamada de Aliança Negra. A maravilhosa cidade élfica Lenórienn, com suas torres de marfim, seus palácios suntuosos e sua magnífica arquitetura emoldurada em harmonia no meio da floresta, havia caído após um longo período de resistência contra os hobgoblins, na chamada infinita guerra. Os elfos, orgulhosos e imponentes, sempre foram superiores e rechaçavam cada investida hobgoblin com facilidade. Isso até o surgimento do lendário Twor Ironfist. Twor era um bugbear gigantesco até para os padrões de sua raça. Tão grande quanto ele mesmo era sua inteligência. Percorrera o mundo aprendendo táticas de guerra até finalmente retornar à sua tribo, tornar-se seu líder e começar a reunir seu exército. Twor foi aos poucos derrotando os outros chefes de tribos, tornando-se líder de cada uma delas, até finalmente se transformar no líder de todos os bugbears. Seu próximo passo foi unir-se aos hobgoblins, ajudando-os a derrotar os elfos. Twor sozinho invadiu a cidade de Lenórienn e seqüestrou a princesa dos elfos, fazendo-a de refém. Graças a isso, às máquinas de guerra dos hobgoblins, e às táticas sujas de Twor, em pouco tempo, a infinita guerra teve um fim. E os elfos foram derrotados. Lenórienn foi invadida e devastada pelos hobgoblins, que agora a faziam de lar. O pacto entre Twor e os hobgoblins se fortaleceu e o bugbear continuou em sua empreitada, unindo todas as espécies goblinóides que existiam na porção sul do continente e formando um grande exército, que agora marchava rumo ao norte, rumo ao reinado. Em seu caminho, nada restou em pé. Os antigos reinos humanos do continente sul, Lamnor, foram completamente destruídos. Aos poucos sobreviventes, fossem eles elfos, humanos, ou até mesmo anões e outras criaturas, restou apenas uma saída, fugir. Os que sobreviveram à carnificina promovida pela Aliança Negra fugiam para o norte, buscando abrigo no território do reinado. E Serena estava entre esses fugitivos.

Assim como muitos, Serena trazia em seu coração uma grande amargura. Sua família, seus amigos e vizinhos tinham sido brutalmente assassinados pelos soldados de Twor Ironfist. A jovem estava fora de sua casa quando tudo aconteceu. As muralhas de Lenórienn caíram sob uma chuva de rochas lançada pelas catapultas hobgoblins, soterrando diversas vidas. Todos fugiam desesperados, tentando buscar abrigo contra o bombardeio inimigo. Alguns elfos, orgulhosos de sua suposta superioridade, recusavam-se a acreditar no que estava acontecendo com sua cidade. Morreram na ilusão de que jamais seriam vencidos.

Serena, por sua vez, era astuta e ágil, o que lhe garantiu uma fuga rápida e segura. Entretanto, em Lenórienn não havia mais algum lugar sequer que fosse seguro, e ela entendeu isso rápido. Serena correu para sua casa, para se juntar à sua família e com ela fugir para a floresta. Mas, por onde ela passava encontrava batalhas e morte. Enquanto os soldados combatiam ferozmente, tentando impedir a invasão, ou no mínimo tentando ganhar tempo para o povo poder fugir, Serena desviava-se da flechas que voavam e das pedras que choviam, orando a Glórien, a deusa dos elfos, para que ela a protegesse e à sua família. Mas, quando Serena finalmente chegou à sua casa, já era tarde demais.

Seus olhos brilharam ao ver sua casa, construída em meio às árvores como se fizesse parte da vegetação. Mas, também se encheram de lágrimas ao ver que o telhado e madeira e palha estava em chamas. Suas pernas estremeceram e paralisaram por completo logo depois. Sua respiração cessou por longos e intermináveis segundos. Então, para seu alívio, a porta se abriu. Sua família estava segura, pensou ela, mas, de dentro da casa, ao invés de elfos, só o que saiu foi um bando de hobgoblins e goblins apressado. Portavam armas, escudos e vestiam armaduras, todos manchados de sangue. Sangue élfico. Serena assistiu à cena, paralisada, impotente, enquanto os goblinóides deixavam sua casa e corriam em direção ao centro de Lenórienn, em busca de mais vítimas. Minutos depois, quando suas pernas finalmente obedeceram e ela pode se mover novamente, Serena avançou até sua casa, a passos curtos, lentos e pesarosos.

Lá dentro, a jovem encontrou a dor. Seu pai jazia bem diante da porta com o pescoço profundamente rasgado pela lâmina de algum maldito hobgoblin. Sua mãe, mais adentro, estava imóvel no chão, com uma flecha rudimentar cravada no dentro de suas costas. Seus olhos ainda vertiam lágrimas, enquanto sua mão tentava alcançar a do marido morto. A irmã de Serena estava sobre a mesa da cozinha, ensangüentada. Sua roupa de seda e linho estava rasgada, seus braços amarrados firmemente nos pés da mesa. Suas pernas abertas traziam as marcas da violência na forma de arranhões feitos por mãos goblinóides. Havia sido brutalmente violentada, até que seu delicado corpo estivesse sem vida. O irmão menor de Serena, vítima do mesmo tipo de violência, jazia morto no chão com o pescoço quebrado, e totalmente despido. Pernas, nádegas e costas apresentavam arranhões e cortes, deixando evidente o que lhe acontecera. Talvez seu irmão tivesse servido de brinquedo nas mãos dos goblins, enquanto os hobgoblins se divertiam violentando sua irmã.

Serena chorou. Chorou silenciosamente, enquanto cobria os corpos daqueles que tanto amava. Com uma tocha, terminou de atear fogo ao que um dia fora um lar feliz, e assim sepultou sua amada família. Quando suas lágrimas secaram, o silêncio finalmente foi quebrado. Serena gritou e urrou, como uma fera selvagem. Em sua mente estavam agora apenas os rostos daqueles miseráveis que haviam matado seus familiares. A elfa saiu correndo pelas ruas de Lenórienn, enfurecida. Recolheu um arco, flechas e uma espada de um dos seus antigos amigos, agora morto, e saiu em busca de vingança.

Serena juntou-se a um pequeno grupo de sobreviventes, e junto com eles conseguiu reunir muitos dos que haviam escapado do massacre para fugirem de sua antiga cidade. Também com eles, ela aprendeu várias técnicas que a tornaram uma combatente e uma caçadora competente. E, o tipo de presa favorito de suas caçadas era, óbvio, goblinóides. Serena não descansou até conseguir matar um a um os desgraçados que haviam invadido sua casa e matado sua família. Ela fazia questão de olhar nos olhos de cada um deles, enquanto os matava lenta e dolorosamente com suas flechas ou sua espada. Quando finalmente sua vingança estava cumprida, Serena decidiu que era hora de abandonar Lamnor e se juntar aos refugiados no continente norte.

Assim, a bela e ressentida elfa passou seus dias viajando, escondida entre a floresta para ocultar-se do exército goblinóide que se tornava cada vez mais numeroso. Vários anos se passaram, desde a destruição do reino dos elfos no sul, Serena viajou por incontáveis léguas, escapou de dezenas de perigos, suportou as mais duras privações até que finalmente conseguiu atravessar o Istmo de Hangpharstyth, o estreito pedaço de terra que unia as porções norte (Remnor) e sul (Lamnor) de Arton.

Agora, anos após a trágica perda de sua família, Serena andava pelas ruas de Valkaria. Já não era mais a inocente e alegre elfa que costumara ser. A vida e suas tragédias tinham-na moldado uma mulher forte, corajosa e independente. Serena caminhava pelas vielas da cidade com passos firmes e decididos. Seus belos olhos verdes encaravam com frieza e desprezo os que a observavam. E o desprezo se transformava em ódio cada vez que seu olhar encontrava algum goblin que passava.

Serena tinha um objetivo claro para estar naquela cidade. Estava cansada de andar sozinha. Embora suas habilidades com o arco fossem inegavelmente extraordinárias, Serena sabia que havia muitos perigos espalhados pelo mundo, perigos demais para serem enfrentados sozinha. Principalmente em se tratando de uma elfa formosa como ela.

Os elfos eram desprezados em Arton, um comportamento que remonta à época em que apenas Lamnor era povoado. Os reinos humanos que começavam a se formar e a prosperar buscaram fazer alianças com os elfos de Lenórienn. Mas, os elfos se recusaram a negociar com aqueles que eles consideravam inferiores. Sendo assim, os reinos humanos assinaram um tratado de não interferência em assuntos élficos. Com esse tratado, os humanos jamais se intrometeriam em qualquer assunto ligado ao reino élfico, fosse para bem, fosse para mal. Dessa forma, os humanos não se importaram quando o reino dos elfos foi destruído. Quando o regente dos elfos percebeu que precisava da ajuda dos humanos, já era tarde demais. Assim, por conta desse fato no passado distante de Arton, os elfos eram todos considerados arrogantes e prepotentes pelos humanos e demais raças. Isso, aliado ao fato de possuir uma grande beleza física, tornava ainda mais difícil a vida de Serena. Ora desprezada, ora atacada, fosse por monstros ou por algum pervertido interessado em se aproveitar dela, Serena estava sempre correndo perigo, em tudo que fazia. E para enfrentar esses perigos iminentes, nada melhor do que poder contar com amigos. Assim, Serena pretendia encontrar um grupo de pessoas que compartilhassem dos mesmos gostos, das mesmas idéias, do mesmo amor pela vida livre e pela aventura e, principalmente, do mesmo ódio pelos goblins, hobgoblins, bugbears, orcs... Enfim, Serena desejava encontrar um grupo de aventureiros, com quem pudesse percorrer todo aquele imenso mundo em busca de emoção, experiência e tesouros.

E, não havia melhor lugar no mundo para se encontrar qualquer tipo de pessoa que se desejasse do que Valkaria. Assim, ela entrou na maior e mais populosa cidade de todo o mundo conhecido, seguindo diretamente para o coração da metrópole, o centro velho, onde ficava a maior obra de engenharia já vista pelos artonienses, a estatua de Valkaria, a deusa da ambição, criadora dos humanos e protetora dos aventureiros.

Serena passou diante da estátua, sem se importar com aquela obra magnífica. Para ela, tudo que não se parecesse com Lenórienn não lhe despertava interesse. Viu quando um estranho homem vestido de branco criou confusão ao reunir uma multidão e anunciar que tinha a prova de que a estátua sugava poderes mágicos, exibindo um rato morto em suas mãos. Serena sabia que estava em um lugar cheio de pessoas estranhas e diferentes, e decidiu ignorar o homem e seguir seu caminho.

A elfa parou diante de um poste onde um lampião aceso tremulava ao vento. Pregados no poste, dezenas de papéis com anúncios e notícias despertaram a atenção dela. Serena pôs-se a ler os papéis procurando por algo de seu interesse. Eram anúncios de pessoas procurando por outras pessoas, propagandas de lojas da cidade, retratos de bandidos procurados pelas autoridades, e muitos outros. Ela esperava encontrar ali uma oportunidade, algum anúncio procurando por aventureiros ou algo do gênero em que pudesse empregar suas habilidades.

Serena lia cada um dos anúncios, atenta e ansiosa, até que algo de estranho chamou sua atenção. O mesmo homem que ainda há pouco causara um pequeno distúrbio, agora gritava como louco, para parar uma carroça conduzida por um bando de halflings. Dentro da carroça, aprisionado em uma jaula, havia um enorme esqueleto animado por magia negra. Serena assistiu confusa ao homem que tentava fazer amizade com os halflings e falava coisas estranhas como chamá-los de irmãos e dizer que queria se tornar um lich. Quando os pequeninos finalmente se livraram do tal homem, o gigantesco esqueleto que eles transportavam arrebentou a jaula na qual estava e saiu andando em direção ao homem. Aquele humano estranho e insano passou então a conversar com o morto-vivo e a acariciá-lo, como se fosse um animalzinho. Depois, mandou que ele pulasse, e o esqueleto deu um pequeno salto. Mandou então que ele saltasse na carroça, e a criatura lançou seu enorme corpo ósseo sobre o veículo, destruindo-o. Depois mandou que a criatura se sentasse, e assim ela fez, esmagando os pobres cavalos, que puxavam a carroça, com seu peso. E então, após tudo isso, o homem saiu andando tranqüilamente, como se nada tivesse acontecido. Mas, não foi longe. Serena viu com satisfação quando vários oficiais da milícia levaram o homem preso. Ao menos alguma coisa naquela cidade a agradara.

Depois de incidente, e de ter lido todos os anúncios, sem encontrar o que procurava, Serena decidiu pedir informações em algum lugar. Assim, ela se dirigiu a uma taverna próxima, uma grande e movimentada taverna chamada Olho de Grifo.

Já dentro da taverna, ela sentiu uma ponta de arrependimento por estar ali. Só havia homens, e todos eles não passavam de um bando de bêbados e desocupados sujos e mal-cheirosos, que insistiam em assediá-la. A cada passo dado, Serena era obrigada a ouvir algum gracejo desagradável, alguma proposta indecente, alguma obscenidade ou algum elogio que mais parecia com ofensa. Mas, apesar de todo esse incômodo, ela estava decidida a ir adiante, não deixaria que aqueles nojentos a intimidassem.

Escolheu uma mesa no lugar que lhe parecia menos desconfortável e sentou-se. Pouco tempo depois, um dos homens veio importuná-la.

_ Boa noite senhorita! Será que posso lhe fazer companhia? - Perguntou o rapaz, um homem alto e moreno, de barba por fazer e que cheirava muito mal.

_ Não! E nem pense em fazer alguma gracinha, ou eu farei um furo extra em sua cabeça! – rosnou a elfa, apontando para o arco.

_ Nossa! Mas que garota nervosa! Que selvagem! Essa daí deve arranhar e morder! Fiquem longe dela rapazes! – zombavam os clientes da taverna, deixando Serena ainda mais irritada.

O homem tentou ainda argumentar, mas foi totalmente ignorado pela moça. Mesmo assim, ele permaneceu ali, olhando-a, até que uma outra pessoa se aproximou.

_ Olá! Posso conversar com você? – era uma voz feminina. Serena olhou e viu uma mulher humana, quase tão bela quanto as damas élficas. Vestia-se com roupas belas e limpas, seu corpo era adornado com jóias lindíssimas e ela não se parecia em nada com as outras mulheres da taverna que estavam ali para venderem seus corpos por alguns tibares sujos.

_ Depende! Se você não estiver querendo me assediar! – respondeu Serena, ainda desconfiada.

_ Claro que não! Posso me sentar? – perguntou a mulher, sorrindo.

_ Sim, claro! Sente-se! E então? Sobre o que vamos conversar? – disse o homem que estava em pé ao lado de Serena, puxando uma das cadeiras e sentando-se.

Serena pegou seu arco rapidamente e apontou uma flecha entre os olhos do rapaz. O olhar da elfa parecia com o de um animal selvagem sedento de sangue. Sem dizer nada, o homem se levantou, encabulado, e foi embora rapidamente.

_ Notei que você não é daqui! E pelos seus trajes, você deve ser o que eu estava procurando, uma aventureira! Certo? – perguntou a humana.

_ É, você acertou! Vim pra cá pra encontrar para encontrar um grupo ao qual eu possa me juntar! Preciso de pessoas confiáveis e que sejam destemidas! Sabe onde eu posso encontrar alguém assim? – perguntou Serena, enquanto guardava a flecha na aljava.

_ Sei sim! Você acaba de encontrar uma! Muito prazer, eu sou Nirvana!


janeiro 02, 2007

Campanha B - Capítulo 2 - A dama das jóias

Capítulo 2 - A dama das jóias

Nirvana atendeu aos últimos clientes do dia e encerrou seu expediente. Fora um dia de trabalho rentável na joalheria de seus pais onde trabalhava desde a infância. Aprendera desde cedo o ofício de joalheiro com seu pai, e dedicava-se a ajudá-lo todos os dias de sua vida. Assim ela passou sua infância, dividindo seu tempo entre as brincadeiras de criança, as lições no templo de Tanna-Toh, deusa do conhecimento, e as horas de trabalho ao lado de seu querido pai. O tempo foi passando, e a menina foi se aprimorando na arte de confeccionar jóias. As lições no templo já iam além de simplesmente aprender a ler e escrever, ela agora aprendia sobre a história de seu povo, sobre a geografia de seu reino e outras coisas mais. Suas brincadeiras também iam se modificando à medida que o tempo passava, até que começaram a, aos poucos, perder a graça que tinham. Nirvana estava crescendo. Outrora uma menina inocente e sorridente, Nirvana agora era uma bela mulher, de cabelos castanhos, pele alva e curvas capazes de virar a cabeça de qualquer homem do reino.

Nirvana estava mudada. Deixara de ser menina e tornara-se uma bela mulher. Mas uma coisa não havia mudado, seu gosto pelas jóias continuava o mesmo. Além de se dedicar com afinco a ajudar seu pai na loja, ela agora exibia em seu belo corpo suas criações. Colares, pulseiras, brincos e anéis, todos adornados com pedras preciosas e entalhes minuciosamente elaborados, enfeitavam o corpo da moça, tornando-o ainda mais belo e atraente. Ela continuava trabalhando com afinco na loja do pai e tinha se tornado tão experiente a ponto de praticamente tocar o negócio sozinha. Nirvana adorava o que fazia, mas já não se sentia satisfeita como quando criança. Como qualquer filha da deusa Valkaria, a deusa da ambição, a jovem moça agora desejava mais do que aquilo. Nirvana sonhava em viver aventuras, tal qual as histórias cantadas pelos bardos nas tavernas que freqüentava. Mas, lhe faltava algo que a impulsionasse para fora dali, algo que a conduzisse ao mundo de aventuras com o qual ela sonhava. Enquanto isso não acontecia, ela se distraia como podia. Durante o dia ela dividia seu tempo entre os afazeres na joalheria e a cartomancia. Nirvana lia a sorte das moças de sua idade, e outras também, através das cartas. Dessa forma ela, além de conseguir alguns tibares extras, se divertia e ajudava outras pessoas. As previsões de Nirvana tinham freguesia fiel e numerosa, mesmo sendo todas falsas. A moça apenas fingia ler o futuro nas cartas, usando toda sua astúcia para enganar as donzelas ingênuas e cheias de dinheiro, dizendo a elas nada além do que elas desejavam ouvir. Assim, suas freguesas saiam sempre satisfeitas da loja, deixando seus tibares nas mãos de Nirvana e voltando regularmente. Já durante a noite nas muitas tavernas de Valkaria. De dia ela trabalhava na loja do pai, mas à noite, Nirvana se libertava, bebendo e se divertindo no meio de mercenários, beberrões e criminosos. Por vezes ela até corria riscos, indo a locais aonde a maioria das moças do reino ousaria sequer de passar perto, nem mesmo sob a luz de Azgher. Ela, ao contrario do que se poderia espera, nada temia, ainda mais após descobrir seus novos poderes.

Sim, junto com a maturidade e o desejo de se aventurar, vieram também os poderes mágicos. À medida que crescia, Nirvana descobriu que possuía algo diferente de seus pais, ela podia fazer magia. Diferente de um mago, que gastava horas estudando para poder lançar um único feitiço, a jovem tinha o poder de concentrar a energia mágica que a cercava em seu corpo e convertê-la em efeitos fantásticos. Além de uma bela e talentosa joalheira, Nirvana era também uma promissora feiticeira. E isso dava a ela ainda mais motivos para querer se aventurar pelo mundo. Presa dentro da loja na capital de Deheon, ela jamais poderia utilizar todos os maravilhosos poderes que possuía, nem descobrir quais eram os seus limites. Assim, ela passa as noites, indo de taverna em taverna, sempre à espera de uma oportunidade para viver uma grande aventura.

Mal sabia ela que naquela noite a tão sonhada oportunidade finalmente chegaria. Sem suspeitar de nada, ela apagou as luzes e trancou as portas da joalheria. Já era noite, e o manto de Tenebra cobria o céu com sua escuridão. Apenas algumas estrelas cintilavam no céu, disputando espaço com a lua em arco. Nirvana guardou a chave da loja em sua bolsa, ansiosa por voltar para sua casa, rever seus pais e finalmente poder sair pelas ruas de Valkaria para aproveitar a noite.

_ Boa noite moça! – os pensamentos de Nirvana foram subitamente interrompidos por uma voz gutural que vinha de trás dela. Ela se virou e viu um goblin, sujo e malcheiroso como todos os goblins de Valkaria, cumprimentando-a.

_ Boa noite! Posso ajudá-lo? – respondeu a garota, desconfiada.

_ Bem, eu gostaria de falar com você sobre os assaltos que estão acontecendo por aqui ultimamente! Não sei se você sabe, mas vários comerciantes da região foram assaltados e agredidos por bandidos nos últimos dias aqui nas redondezas! – o pequeno ser falava com sua voz rouca e gutural enquanto gesticulava.

_ Não, não estou sabendo de nada disso! Mas o que isso tem a ver comigo? – Nirvana tentava encurtar a conversa e já começava a ficar irritada com aquele sujeitinho.

_ Bem moça, você tem uma bela loja e, assim como os outros comerciantes, também pode ser vítima de um atentado! Justamente por isso, meu patrão me mandou aqui! Ele está unindo todos os proprietários da região, para evitar que novos atentados ocorram! A mando dele eu estou recolhendo de todos os lojistas uma taxa em dinheiro pra que sejam contratados alguns seguranças para proteger a região! Seria algo como uma taxa para proteção de todos os comerciantes locais! Meu patrão já está recrutando mercenários para vigiarem as redondezas e....

_ Ah sim! Agora eu entendi! Mas eu já paguei essa taxa ontem! Então pode ir embora, já está tudo certo! – Nirvana interrompeu o goblin, já entendendo que se tratava de um golpe, e tentou enganá-lo.

_ Como assim já pagou? É sério? – perguntou o goblin, confuso.

_ Sim, é sério, paguei essa taxa ontem! Faz assim, vá conversar com seu patrão e você vai poder confirmar que eu já paguei!

_ Bem, se é assim...então eu já vou embora! – o goblin saiu lentamente, coçando sua cabeça, confuso. Caminhava com dificuldade, meio arrastando uma das pernas, como se estivesse ferido. Foi até perto de uma esquina, parou e deu uma olhada para trás, encarando Nirvana, e dobrou a esquina, desaparecendo da visão da mulher.

Aquele ser desprezível tramava alguma coisa, e Nirvana sabia disso. Sem perder tempo, a moça se dirigiu até o posto da milícia mais próximo e relatou tudo que tinha acontecido.

_ ...então ele veio me pedir dinheiro! Disse que era uma taxa de proteção! Eu consegui enganá-lo, dizendo que já tinha pagado a taxa, e ele foi embora! Mas desconfio que ele seja um criminoso que só queria extorquir meu dinheiro ou me assaltar! Por favor, façam alguma coisa! – Nirvana falava e gesticulava com graça e delicadeza. Seu jeito meigo e frágil cativava os soldados que prontamente saíram em perseguição ao tal goblin.

_ Então senhorita, quer que eu a acompanhe até sua casa! Pode ser perigoso uma moça tão bela e delicada quanto você andar sozinha por essas ruas escuras! Eu posso protegê-la e levá-la até sua casa! – disse o oficial responsável pelo posto da milícia, oferecendo seu braço como apoio para Nirvana.

_ Está bem, obrigada! – Nirvana agarrou-se ao braço do soldado e sorriu, achando graça de tudo aquilo. Mal suspeitava o soldado que a frágil moça ao seu lado era mais perigosa e astuciosa que ele e o goblin juntos.

Nirvana entrou em sua casa, dando um beijo carinhoso em seu pai e sua mãe. Conversou com eles por alguns instantes enquanto comia um pedaço de pão e tomava uma tigela de sopa. Depois foi até os fundos da casa onde se banhou em uma tina e trocou de roupa. Pegou a bolsa com suas moedas, cartas de tarô e alguns componentes mágicos (só os mais elaborados, já que ela não necessitava de itens simples como pêlos, unhas, areia e outras coisas mundanas para realizar seus feitiços). Prevenida, como sempre, também pegou suas armas, uma besta pequena e uma lança, e as levou consigo. Valkaria era uma cidade moderna e muito bem cuidada pelas autoridades, mas também tinha seus perigos, portanto, era bom não abusar da sorte.

Nirvana se despediu dos pais e saiu. Foi até o centro velho da cidade, a região mais famosa e movimentada da capital. O lugar onde ficavam a arena e o palácio imperial, e onde ficava a famosa estátua da deusa da humanidade, Valkaria. A magnífica estátua de meio quilômetro de altura, esculpida sabe-se lá por quem, retratava Valkaria, a deusa da humanidade, da ambição e dos aventureiros, de joelhos, com as mãos estendidas ao alto, como se suplicasse por alguma coisa. Ninguém sabia quem havia construído aquela obra espantosa, nem mesmo os anões de Doherimm sabiam dizer quem poderia ter construído aquela estátua, ou há quanto tempo ela estava ali. O único fato concreto é que ela já estava ali naquele local quando os exilados chegaram do continente sul, Lamnor, e desde aquele tempo até os dias atuais não apresentava qualquer sinal de desgaste. Dizia um louco conhecido dos moradores locais que a estátua na verdade era a própria deusa transformada em pedra como castigo por ter traído os outros deuses. Mas, ele era apenas um mendigo louco, e só mesmo sendo louco para dar ouvidos a um tipo assim. Além disso, a estátua era cercada de boatos e lendas obscuras. Segundo uma delas, se alguém ou algum objeto com poderes mágicos tocasse na estátua, por um instante que fosse, perderia todos os seus poderes imediatamente. Mas, Nirvana não estava ali para perder tempo com boatos ou mendigos loucos, mas sim para se soltar e se divertir. Assim, a jovem dama seguiu para a taverna Olho de Grifo, uma das mais famosas e movimentadas tavernas da cidade.

Enquanto caminhava pelas ruelas da cidade, Nirvana notou que um corre-corre incomum tomava conta área ao redor da estátua. Pessoas passavam correndo assustadas, gritando algo sobre um monstro à solta pelas ruas. Ansiosa para poder testar seus poderes mágicos, a moça seguiu o burburinho até encontrar a fonte do distúrbio. Era um homem, vestido com uma túnica toda branca, que brincava e acariciava uma criatura morta-viva de quatro metros de altura, um esqueleto. A criatura, embora estivesse solta, não representava perigo algum, já que estava sob o domínio daquele estranho sujeito. E como o tal rapaz parecia mais inofensivo do que o próprio monstro com o qual brincava, Nirvana percebeu que não havia motivo para se preocupar com mais uma das excentricidades da cidade em que vivia.

Frustrada, e ao mesmo tempo achando graça de toda aquela situação, Nirvana entrou no Olho de Grifo, como costumava fazer. Desta vez, entretanto, ela sentia algo diferente no ar. A noite mal começara e ela já presenciara dois fatos pra lá de estranhos. Aquela noite prometia. Nirvana sentia que algo grandioso aconteceria naquela noite. E teve a certeza disso quando seus olhos circularam dentro da taverna, analisando cada pessoa ali presente, e encontraram alguém incomum. Era uma elfa jovem e muito bela, de longos cabelos dourados e olhos verdes como esmeraldas. Não era uma das muitas mulheres que freqüentavam o local durante a noite, que vendiam seus corpos para qualquer vagabundo sujo em troca de alguns meros tibares. Ela tinha um ar nobre, distinto, meio arrogante até, assim como todos os elfos, e ao mesmo tempo Nirvana via em seus olhos uma enorme tristeza e amargura. Vestia roupas de couro batido e trazia nas costas um belo arco e uma aljava carregada de flechas. Na cintura, uma longa espada embainhada chamava a atenção, bem como um grande escudo de madeira apoiado num dos pés da mesa. Era, sem dúvida nenhuma, uma aventureira. Alguém com histórias fantásticas para contar. Alguém que conhecia o mundo além das ruas de Valkaria. E, se tivesse sorte, alguém que trouxesse uma oportunidade para Nirvana também se aventurar pelo mundo. Sem perder mais tempo, a jovem feiticeira foi falar com a elfa. Sem dúvida alguma, aquela era uma noite especial.

Campanha B - Capítulo 1 - Uma noite promissora

Capítulo 1 - Uma noite promissora

Estávamos no ano de 1398 do calendário élfico. O décimo dia de Cyd, o mês da batalha, finalmente terminava. Aquele início de noite, um jetag quente de verão, trazia, além de uma brisa refrescante, a promessa de uma nova saga heróica que se iniciaria naquela noite. Arton era um mundo de problemas. Atacado de um lado pela Tormenta, de outro pela, até então ignorada, Aliança Negra, além de vários outros distúrbios menores que o tornavam um terreno fértil para as pessoas de grande poder e coragem. E essas pessoas existiam em grande quantidade no mundo. Sim, Arton era também um mundo de heróis. Heróis valorosos que registrariam seus nomes nas páginas da história, cujos feitos seriam cantados pelos bardos de um extremo a outro do mundo.

Um desses heróis, embora ele próprio sequer desconfiasse disso, era Lohranus Kalin. Lohranus era um guerreiro selvagem da raça dos minotauros, vindo do distante reino de Tapista. Lohranus estava agora em Valkaria, a grande capital de Deheon, o centro comercial e político de todo o mundo conhecido, lar da magnífica estátua da deusa homônima, com seus impressionantes quinhentos metros de altura, lar da famosíssima Arena Imperial, por onde passavam os maiores gladiadores do mundo, e lar da Grande Academia Arcana, escola responsável pela formação de grande parte dos magos que usavam seus poderes para tornar Arton um mundo melhor para se viver. Valkaria era uma gigantesca metrópole, que brilhava e atraia milhares de pessoas ávidas por conhecerem suas maravilhas. E naquele dia a grande capital estava ainda mais viva e brilhante. Fazia tão somente três dias que a cidade havia comemorado o aniversário da Grande Batalha, na qual os povos derrotados foram exilados do continente sul e rumaram para o norte, onde fundaram o conjunto de nações que era conhecido como reinado. Em dias assim a cidade costumava fervilhar de tanta gente que a visitava. Devia haver por volta de dois milhões de pessoas ali naquela noite, todas comemorando o feriado e se divertindo nas tavernas que se espalhavam pelas ruas da capital.

Mas, ao contrário da cidade que o acolhia, Lohranus não brilhava naquela noite, nem sequer se divertia. Entre um gole e outro de água, estrategicamente servida em uma garrafa de hidromel, o minotauro tentava esquecer fatos tristes de seu passado recente, enquanto ganhava algumas moedas de ouro fáceis das pessoas que o desafiavam para uma queda de braço. Por acharem que o minotauro estava bêbado, todos acreditavam ser fácil derrotá-lo. Mas, após as apostas terem sido feitas, Lohranus mostrava sua força descomunal e derrotava seus adversários, como se lutasse com crianças. Ele por sua vez, não se divertia com aquilo, tampouco se orgulhava do que fazia. Apenas se aproveitava daqueles idiotas para ganhar dinheiro suficiente para pagar sua estada na cidade e sua alimentação até conseguir algo melhor pra fazer.

Lohranus desejava encontrar um grupo de aventureiros, pessoas com as quais pudesse sair pelo mundo em busca de fortuna e desafios. Desafios que o fariam esquecer aquilo que ele não comentava com quem quer que fosse, a sombra que o perseguia todos os dias de sua vida. Por isso ele estava ali, na taverna Olho de Grifo, aguardando ansioso por uma oportunidade, conversando com as pessoas, checando os avisos deixados no estabelecimento e exibindo sua enorme força.

O minotauro já estava ali há várias horas. Passara praticamente todo o dia na taverna ganhando seu dinheiro fácil. A noite começava a cair e a população que freqüentava o estabelecimento também começava a mudar junto com a paisagem lá fora. Se há pouco o local era freqüentado por todos os tipos de pessoas, incluindo crianças, acompanhadas de seus pais, e mulheres, devidamente protegidas por seus companheiros, agora eles rareavam no local. Ao invés de turistas, mulheres e crianças, o local agora era tomado por homens, em geral sujos e mal vestidos, de aparência rude e até mesmo sombria. Junto com a noite, vinham os criminosos, os bêbados, os vagabundos e vigarista, e os aventureiros. Lohranus aguçou seus sentidos, em busca da tão esperada oportunidade de recomeçar sua carreira de aventureiro. Mas sua esperança logo se esvaiu ao notar que apenas os vagabundos de costume marcavam presença no local. Sem ter nenhuma possível oportunidade em vista, e já com os bolsos recheados com Tibares dourados, Lohranus decidiu que era hora de encerrar o expediente e recolher-se ao seu quarto. Foi quando ele notou que era observado.

Em uma mesa distante, no extremo oposto da taverna, havia um homem franzino. Vestia-se com roupas finas e caras, muito limpas por sinal, mas não parecia pertencer à nobreza. Devia ser apenas algum comerciante rico, ou um criminoso bem sucedido. Tinha um cabelo curto e castanho, muito bem penteado e limpo, repartido ao meio com precisão milimétrica. Seu rosto era limpo, sem um fiapo de barba sequer, e afilado. Possuía orelhas arredondadas e pequenas, e olhos atentos, que prestavam atenção em tudo à sua volta, especialmente Lohranus. Só agora o minotauro se dava conta de que a cada disputa de queda de braço realizada por ele, o estranho homem o observava, como se o medisse, e depois disfarçava, ocultando seus olhos e intenções atrás de uma caneca de bebida. Desconfiado e destemido, o selvagem guerreiro decidiu que era hora de fazer algumas perguntas ao homenzinho.

Lohranus se levantou, e caminhou em direção à mesa onde o homem estava sentado. Seu corpo enorme e musculoso, coberto por pêlos pardos e uma armadura de couro e placas metálicas chamava a atenção dos freqüentadores do lugar. Como se não bastasse, uma enorme espada de lâmina larga servia como um intimidador adorno preso às costas do minotauro. O homem notou a aproximação de Lohranus e ficou imediatamente incomodado. Pegou algum objeto em seu bolso, e o olhou por um instante. Fez uma expressão de espanto, que Lohranus prontamente identificou como fingimento, deu um último gole em sua caneca e se levantou para ir embora, como se estivesse atrasado para algum compromisso.

_ Sente-se! – disse Lohranus, sua voz grave parecia um trovão.

_ Sinto muito, cavalheiro, mas estou atrasado, já é hora de eu ir embora! – respondeu o homem com um sorriso e a voz trêmula, ignorando o pedido do minotauro.

_ Sente-se, eu disse! Quero ter uma conversa com você! – o minotauro puxou uma cadeira para se sentar e rugiu para o homem que tentava fugir.

_ Claro amigo! Vamos conversar então! – o homem sorriu e se sentou novamente com naturalidade. E uma gota de suor escorreu pelo seu rosto.

_ Bem, vamos do começo! Eu sou Lohranus, e você? – o minotauro estendeu gentilmente a mão para o humano.

_ Muito prazer, eu sou Tonny! – ainda temeroso, o homem apertou a mão do minotauro e pode sentir toda a sua poderosa força.

_ Bem Tonny, agora que nos conhecemos, vamos direto ao ponto! Eu percebi que você ficou me observando o dia todo! Eu quero saber o porquê! – disse Lohranus, encarando o homem com seriedade.

_ Bem, vou direto ao ponto, como você mesmo disse! Meu patrão é um empresário bem sucedido que, como muitos outros, faz parte da agencia gladiadores que atuam na Arena Imperial! Eu não pude deixar de notar sua grande força física e tenho certeza de que com ela, você seria um grande gladiador! E então, não gostaria de trabalhar para meu patrão? Ser um gladiador na arena? Ter fama e ganhar muito dinheiro? Tenho certeza que meu patrão ficaria muito satisfeito em tê-lo em seu time de gladiadores e pagar-lhe um bom salário! Então, o que me diz? – respondeu Tonny, já confiante e sem o medo de antes.

_ Olha, Tonny, é uma proposta tentadora, mas no momento não estou interessado! Eu estou tentando me juntar a um grupo de aventureiros, para sair por ai caçando tesouros! Sinto, mas vou ter que recusar sua oferta! – concluiu o minotauro.

_ Está bem então! É uma pena, mas devo respeitar sua vontade... – Tonny já se preparava para despedir-se de Lohranus, quando uma pequena multidão alvoroçada invadiu a taverna, interrompendo-o.

_ Monstro!!! Tem um monstro à solta lá fora!!! Escondam-se!!! Fujam!!! – gritavam as pessoas em desespero.

Monstro. Era a oportunidade que Lohranus esperava. Já fazia um bom tempo que ele não lutava, que não matava um inimigo. Sem hesitar, o minotauro abandonou a taverna às pressas, com sua espada nas mãos, ansioso pelo combate.

Lá fora, além das pessoas que fugiam desesperadas, havia um estranho homem. Vestia um manto todo branco que contrastava com a escuridão da noite. Em seu peito havia um símbolo negro, parecia ao longe uma estrela de cinco pontas. Estava parado no meio da rua, totalmente alheio ao pandemônio à sua volta, acariciando um gigantesco esqueleto. O homem conversava e brincava com uma enorme caveira, de cerca de quatro metros de altura. Talvez fosse o esqueleto de um troll, ou de um ogro, Lohranus não tinha certeza, mas sabia que aquilo era obra de magia. O minotauro percebeu que perto dali havia uma carroça, em forma de jaula, onde um bando de halflings armados de lanças gritava furiosamente para o homem de branco. Talvez os halflings e aquele estranho humano estivessem transportando aquele monstro. Era uma coisa totalmente estranha e nova para Lohranus. Mas, ele estava em Valkaria, a capital do reinado, conhecida por suas maravilhas e excentricidades, logo, coisas daquele tipo deveriam ser comuns ali. E, já que a criatura não demonstrava agressividade, ao invés disso recebia os agrados do humano que conversava com ela, não havia motivos para Lohranus se preocupar ou entrar em combate. Decepcionado, o minotauro retornou para a taverna, assim como os outros freqüentadores. Mas, ao invés de ir se deitar, decidiu permanecer por ali, para esperar que lhe surgisse uma boa oportunidade de aventura. Lohranus já tinha visto todo tipo de esquisitice naquela metrópole, mas aquela noite estava superando todas as suas expectativas. Era sem dúvida nenhuma uma noite muito promissora e ele não estava disposto a perder as chances que estariam por vir.