setembro 09, 2006

Capítulo 230 – Contrato de sangue

Capítulo 230 Contrato de sangue

Era o entardecer do 18º dia de Lunaluz, um tirag. Após viajar por dois dias inteiros rumo ao norte e desviar para o leste no terceiro dia, Glorin finalmente parou o cavalo e desceu.

_ Squall, você terá que esperar aqui! Entregue-me o Cloud! Aconteça o que acontecer, me espere aqui! – pediu Glorin.

Squall entregou seu amigo pássaro nas mãos do capitão. Cloud estava cada vez mais fraco, quase nem respirava mais direito. Suas penas caiam e seu corpo parecia apodrecer. Exalava um cheiro que lembrava o dos mortos-vivos do castelo de Zulil. Cloud estava aos poucos se tornando um deles.

Glorin apanhou o pássaro cuidadosamente e o tomou em seus pequenos braços. O animal estava embrulhado em várias camadas de tecido, para mantê-lo protegido do frio que os cercava. Tudo ao redor era branco. Estavam cercados de neve e gelo por todos os lados. Assim era o território da rainha Beluhga. Assim eram as Montanhas Uivantes.

Glorin se afastou de Squall lentamente, descendo um pequeno morro e seguindo na direção oposta ao poente. Squall o observava, angustiado, rezando para que ele conseguisse salvar seu estimado amigo. A tristeza que sentia em seu peito era indescritível, ele quase não conseguia segurar as lágrimas.

Quando estava já bem distante, Glorin se virou para trás, segurando o embrulho onde estava Cloud com apenas uma mão, e acenou para Squall com a outra, dizendo para que ele aguardasse até a volta do anão. Era exatamente como Squall havia sonhado, dias atrás, após ter desmaiado quando usou a varinha de invisibilidade pela primeira vez. Glorin continuou andando. Squall mal podia reconhecê-lo naquela imensidão branca, os raios do sol, que refletiam na neve, ofuscavam sua visão. O anão continuou andando até desaparecer, dentro de uma caverna de gelo, camuflada no meio da paisagem alva. À medida que o anão se afastava com Cloud, o feiticeiro sentia suas forças lhe abandonando. Parte de Squall estava morrendo.

Após longos e intermináveis minutos, Glorin surgiu na entrada da caverna, mandando que Squall fosse até ele, com um gesto de mão. Rapidamente o feiticeiro montou no cavalo e partiu em disparada até a caverna. Glorin foi direto e implacável.

_ Squall! Seu pássaro está morrendo! Ele não vai durar muito tempo! Mas parece que há um meio de salvá-lo! Venha comigo! – disse o anão, pesaroso.

Os dois seguiram, caverna adentro, sem trocarem uma palavra sequer. À medida que caminhavam, a caverna ia se tornando cada vez mais ampla, até tomar dimensões de um verdadeiro palácio. Lá dentro, havia mesas, prateleiras, estantes, cadeiras, e outros móveis todos esculpidos no próprio gelo que se formava na gruta. Espalhados por todos os lugares, havia ferramentas, vidros e papéis com anotações. O lugar inteiro parecia um grande laboratório feito de gelo e iluminado por estranhas tochas que emitiam uma luz fantasmagórica.

No fundo da caverna havia um tipo de bancada de gelo, sobre a qual estava Cloud, já desenrolado de seus panos. Squall se aproximou do amigo já desiludido, quando notou a presença de uma pessoa oculta ao lado de uma estante.

_ Aqui estamos, Segê! – disse Glorin.

Um elfo de longos cabelos brancos se virou para os dois. Tinha a pele quase tão alva quanto a neve que o cercava, e olhos tão azuis quanto o céu num dia claro de verão. Trajava um manto simples de tecido também branco e caminhava com tamanha firmeza, que inspirava temor em Squall. Seu olhar era frio e cortante, como uma estalactite de gelo. O elfo caminhou até Squall lentamente, encarando-o firmemente.

_ Você é Squall, certo? Serei sincero e direto! Seu falcão está morrendo! Acredito que não lhe reste mais do que uns trinta minutos! O feitiço usado nele era bem poderoso e está transformando-o num morto-vivo, pouco a pouco! Dentro de minutos ele se tornará um zumbi, ou um carniçal, e nós seremos obrigados a destruí-lo! Contudo, há um meio de tentar salvá-lo, embora não haja garantias de que ele funcione! Está disposto a tentar? – disse o elfo. Sua voz era calma e firme, inspirava ao mesmo tempo confiança e temor. Seus modos de falar e se portar, indicavam tratar-se de uma pessoa muito sábia e importante.

_ Sim! Estou disposto a tudo pra salvar o Cloud! – respondeu Squall, enxugando as lágrimas que escorriam pelo rosto.

_ Ótimo! Glorin disse-me que você é um feiticeiro, e que o pássaro é seu familiar! Vocês devem possuir um elo místico que os une um ao outro! Se ele morrer, parte de você também morre, você já deve saber disso! Seu pássaro está morrendo, sua vida está sendo drenada pouco a pouco pela magia que o atingiu! O único modo de salvá-lo, seria dando-lhe uma nova vida! A sua vida! É preciso que você sacrifique sua vida para salvá-lo! Uma parte de você está ligada a ele! Se ele morrer, essa parte também morrerá! Mas, você pode sacrificar essa parte para ceder a ele, ou seja, é preciso que você sacrifique sua vida para que ele tenha esperanças de viver! Então, está disposto a abrir mão de sua vida para salvá-lo? – continuou o misterioso elfo, falando com total frieza.

_ Sim! Estou disposto a tudo pelo Cloud! Se ele puder viver, eu darei minha vida de bom grado! – respondeu Squall, sem hesitar. Sua voz era firme e decidida.

_ Está certo! Então morraaaaa!!! – o elfo apontou sua mão para Squall e gritou. Seus olhos azuis brilharam como opalas e Squall perdeu os sentidos.

Squall acordou tempos depois. Não sabia quanto tempo havia se passado, mas sabia apenas que estava vivo. Sentia uma forte dor no ombro esquerdo, uma dor aguda e contínua. Olhou para o lado e compreendeu o motivo de tanta dor. Havia um tubo de metal cravado no pescoço de Squall. Do tubo saia um tipo de tripa, pela qual o sangue do feiticeiro fluía em abundância. Na outra extremidade, havia outro tubo de metal conectado à tripa e que estava encravado no peito de Cloud. Squall estava deitado em uma cama de gelo ao lado daquela em que estava seu familiar. Glorin estava abaixado, pressionando um fole que estava conectado à tripa por um frasco de vidro cheio de sangue. A cada vez que o anão pressionava o fole, maior era a dor sentida por Squall. Ao lado de Cloud estava o misterioso Segê. Com as mãos sobre o corpo do falcão, o enigmático elfo recitava versos e mais versos em total concentração, como se conjurasse alguma magia. Cloud se debatia como louco em cima da bancada de gelo. Estava sofrendo uma dor pior que a morte, e Squall sofria junto com seu amigo por não poder ajudá-lo. Squall viu seu sangue fluindo para o corpo de Cloud, e logo depois perdeu os sentidos novamente.

Acordou novamente muito tempo depois. Estava zonzo e fraco e percebeu que estava em uma outra cama, também de gelo. Sua visão foi aos poucos voltando ao normal, e seus ouvidos puderam perceber gritos não muito longe dali.

_ Glorin! Seu maldito, verme traidor! Como ousa trazer um dragão vermelho aos meus domínios? O que pretendia com isso, seu miserável? – gritava enfurecida a primeira voz, muito parecida com a de Segê, mas sem aquela calma de antes.

_ Me desculpe Segê! Não fiz de propósito! Eu até sabia que ele tinha sangue de dragão, mas não sabia que era de dragão vermelho! Também nem me lembrei disso quando o trouxe pra cá! E...espere, ele está acordando! – era a voz de Glorin.

Subitamente, a discussão cessou, e o anão surgiu e se aproximou de Squall. O anão colocou a mão no ombro do feiticeiro e suspirou, enquanto balançava a cabeça para os lados.

_ Sinto muito, garoto! Ele morreu! – disse o anão. Os olhos de Squall se encheram de lágrimas e Glorin estampou um largo sorriso no rosto. - Estou brincando! Hahaha, essa é minha vingança, agora é minha vez de dar susto em vocês! Deu tudo certo! Venha, vou levá-lo até o cloud!

Com a ajuda do anão, o elfo se levantou da cama, e notou algo de estranho. Havia um buraco no gelo, que tinha o formato exato do corpo de Squall. O feiticeiro olhou, assustado para a cama de gelo e perguntou a Glorin o que tinha acontecido.

_ É, vocês deram o maior trabalho pra gente essa noite! Gastei várias pedras de gelo para resfriá-lo, dê uma olhada no chão! – respondeu o guerreiro.

Squall olhou para baixo e viu que havia uma enorme poça de água congelada sob seus pés. O buraco na placa de gelo da cama tinha o formato do corpo de Squall porque ele afundara no gelo ao derretê-lo com seu calor.

Os dois caminharam até a bancada onde Cloud estava. Estava vazia. Squall se desesperou, mas Glorin o acalmou, dizendo que estava tudo bem. Os dois continuaram caminhando até a entrada da caverna, onde Segê os aguardava, com Cloud nos braços.

_ Bom dia, Squall! Parece que a experiência funcionou! Entretanto, esse anão inútil não me disse que você possui sangue de dragão correndo em suas veias! Isso acarretou uma série de conseqüências! Seu falcão não será mais o mesmo que era antes! Seu sangue dracônico causou uma mutação nele! Não posso dizer ao certo no que isso resultará, mas posso garantir que ele ficará bem! Entretanto, os efeitos dessa mutação, você só saberá quando ele se restabelecer completamente! Lembre-se de uma coisa! A ligação sobrenatural que vocês possuíam se aprimorou! Você está mais ligado a ele do que nunca esteve! É melhor que você cuide muito bem desse falcão daqui por diante, para seu próprio bem e dele! Seu sangue corre nas veias dele, e o dele nas suas! Vocês agora são quase um só! Lembre-se muito bem disso! Outra coisa! Ele já chegou muito fraco aqui, já estava praticamente morto! Foi quase um milagre nós termos conseguido salvá-lo! Porém, ele não saiu ileso dessa experiência! A parte dele que morreu demorará a ser recuperada, em outras palavras, ele perdeu muitas habilidades após tudo isso! Mais um detalhe importante! Não deve revelar a ninguém a localização deste lugar! Eu só o ajudei por que foi a pedido de Glorin! E se um dia você revelar esse lugar para alguém, irá pagar caro por isso! Agora parta, jovem Squall, e tenha boa sorte em seu caminho! – disse o misterioso elfo.

_ Muito obrigado por tudo! E eu prometo que não revelarei nada a ninguém sobre esse lugar! Obrigado e adeus, Segê! É esse seu nome, certo? Segê? – disse o feiticeiro, emocionado.

Segê apenas olhou para o anão e balançou a cabeça em sinal de desaprovação. Glorin e Squall montaram no cavalo, que já estava selado e pronto para partir. Squall pegou seu amigo Cloud nos braços, sentia a presença dele mais forte do que nunca. Olhou nos olhos dele e percebeu que já não eram os mesmos. Ao invés dos olhos amarelos, com grandes pupilas negras circulares, o falcão possuía agora pupilas achatadas e verticais. Seus olhos pareciam com os olhos de répteis, como olhos de dragão.

Partiram, deixando para trás o enigmático Segê. Squall tinha sua mente tomada por dúvidas sinistras, em relação ao elfo que o ajudara.

_ Capitão! Que é esse Segê? Aliás, esse é mesmo o nome dele?­ – perguntou o feiticeiro.

_ Bem, Segê é só um tipo de apelido! Eu o conheci há muito tempo atrás! Ele salvou minha vida, e desde então eu sempre venho visitá-lo para lhe contar das novidades do mundo! Nós já tivemos algumas desavenças no passado, mas hoje somos bons amigos! Mas lembre-se! Não deve contar a ninguém onde ele vive! – respondeu Glorin.

_ Entendo! Ele parece ser bem poderoso! Nem vou perguntar o nome verdadeiro dele! Acho que é melhor assim!

_ Ótimo, garoto, assim é melhor! Saiba que ele não só é muito poderoso, como também é a pessoa mais sábia que eu já conheci! Ele é capaz de responder quase qualquer coisa! Sempre que preciso de algum conselho ou resolver algum mistério, venho pedir ajuda a ele!

_ Nossa, que interessante! Pensando bem, acho que vou perguntar o nome dele sim!

_ Agora já é tarde demais! Você já disse que não perguntaria, não pode mais voltar atrás!

_ Ah capitão, conta vai!

_ Não! Agora pare com essas perguntas chatas!

E Squall ficou sem saber o nome verdadeiro de Segê. Viajaram pelo resto do dia, rumo a sudeste, até que finalmente avistaram o forte Rodick, pouco antes do pôr-do-sol. Glorin e Squall foram recebidos com alegria por seus amigos e por todos os soldados do forte. Tudo finalmente acabara bem. Era o 19º dia de Lunaluz, o mês de Lena, a deusa da cura. Era um morag ensolarado no reino de Tollon. Era o final de uma jornada cheia de perigos e o início de uma nova era de aventuras para aqueles jovens e corajosos heróis. Um novo tempo começava, prometendo fortes emoções e aventuras inesquecíveis que seriam cantadas pelos bardos de Arton e além, até o final dos tempos.

Um comentário: