Capítulo 19 – Cilada
Os aventureiros ainda dormiam quando o sol raiou no dia seguinte. Somente no final da manhã é que eles foram enfim despertar de seu merecido descanso. Kallas voltou às suas pesquisas numa biblioteca próxima, enquanto Nirvana trabalhava na joalheria, lapidando a jóia que tinha encontrado durante a investigação, para conseguir um melhor preço por ela quando fosse vendê-la. Enquanto isso, Susrak surpreendia e assustava seus pais com sua transformação. O casal se encheu de alegria ao ver que o filho finalmente retornava de suas viagens, porém, a alegria durou pouco, apenas até perceberam no que o filho deles havia se transformado, um servo das trevas. Susrak gargalhava, debochando da reação de seus pobres pais, tolos mortais que não conheciam o verdadeiro caminho, pensou ele. Mas, apesar de sentir prazer em deixá-los espantados, os laços afetivos ainda eram fortes e impediam-no de fazer-lhes qualquer mal, ao menos por enquanto.
Em outra parte da tumultuada metrópole, Lohranus e Serena ajudavam Myrian na busca por seu amigo. O minotauro as levou até o local onde tinha soltado o animal na noite anterior. Começaram a buscar por pegadas dele e Serena pôs toda sua experiência de rastreadora à disposição para localizar o animal. Assim, em pouco tempo, a elfa conseguiu encontrar os rastros do lobo, já quase apagados pelos passos das muitas pessoas que por ali circulavam durante o dia. Seguiram-nos até um beco, onde o lobo teria se alimentado de restos, depois retornaram para a rua e as pegadas desapareceram. Myrian chegou a ficar preocupada, temendo que Grandwolf, se é que era ele o lobo que rastreavam, pudesse ter sido novamente capturado. Mas, Serena não desistiu facilmente, e observando o terreno ao redor, começou a deduzir o que poderia ter acontecido. Havia circulação de carroças no local, e o animal poderia ter subido em alguma delas em busca de comida. Também havia locais como muretas e parapeitos, por onde ele poderia ter passado, sem deixar marcas no chão. Além disso, já estavam quase na metade do dia, logo, era possível que os rastros da fera tivessem sido destruídos pelo movimento de pessoas, cavalos e carroças que por ali transitavam. Avançaram por um quarteirão inteiro, procurando às cegas, até que Serena avistou novas pegadas, que conduziam a um beco. Seguiram os passos, acelerados, e avistaram um grande lobo dormindo no fundo da viela. Era Grandwolf.
Myrian se aproximou silenciosamente, mas, talvez pelo seu cheiro, o animal despertou e correu ao seu encontro, abanando a cauda freneticamente. A elfa abraçou seu amigo com emoção, e todos puderam retornar para a taverna e se alimentar.
A noite caiu, para alegria de Susrak e seus irmãos de fé. Assim, o “escolhido de Thyatis” , como ele mesmo se chamava, foi ao encontro de seus amigos, ou, daqueles mortais que o ajudariam a alcançar seu objetivo, antes de serem descartados como lixo. Encontraram-se diante do posto da milícia, onde tudo havia começado, e foram em busca de sua prometida recompensa. O capitão os recebeu com alegria, entregando o ouro prometido, mil moedas, e agradecendo-os pelos serviços prestados à cidade de Valkaria.
Logo após, foram todos convidados a visitar os pais de Nirvana e a saborear o delicioso jantar que a mãe da feiticeira tinha preparado. Courtney, a mãe de Nirvana, demonstrava preocupação em saber que sua filha agora andava com aventureiros e temia que coisas ruins pudessem acontecer a sua querida filha. Nirvana, entretanto, estava ansiosa por participar de novas aventuras e por conhecer o mundo. Já o pai da moça, o senhor Kurt, parecia despreocupado e até feliz pelos grandes feitos de sua filha e entusiasmado com as possibilidades que o futuro reservava a ela. E, durante o jantar, em meio a conversas e histórias, Kurt e Susrak fizeram grande amizade, e o homem chegou a sugerir que o clérigo seria um bom pretendente para sua filha. Mal sabia ele quais segredos obscuros a mente enlouquecida de Susrak ocultava. A noite terminou tranqüila e todos, com exceção de Susrak, foram dormir.
Na noite seguinte, a 13ª do mês, voltaram a se reunir, dessa vez para acompanhar a operação na taverna Bom Aroma. Várias pessoas foram presas consumindo Achbuld, e o líder da quadrilha apareceu, conforme as informações arrancadas do refém de Serena e Nirvana, e foi capturado. Todos foram levados para a prisão, e o capitão da milícia deu o caso por encerrado. Quanto ao grupo de aventureiros, só lhes restou esperar pelo dia seguinte e irem em busca de outras chances de aventuras.
Já pouco antes do dia 14 de Cyd nascer, Susrak retornou para casa e foi se deitar. Orou a Tenebra, como sempre fazia, pedindo por sua proteção. Mas, naquela manhã em especial, ele pediu algo mais. Intrigado com as palavras de Nirvana, Susrak se questionava agora se sua vingança pela morte de sua irmã deveria ou não se concretizar. Pediu então à sua deusa que lhe mostrasse qual o caminho a ser seguido, o que de fato ele deveria fazer. E assim Tenebra o fez, ou pelo menos, era isso o que Susrak acreditava. Sonhou com o dia da morte de sua irmã, quando ele entrou em casa e encontrou sua mãe aos prantos, segurando o corpo de sua irmã já sem vida, enquanto os assassinos fugiam. Em seu sonho, Susrak olhou para os criminosos, mas não pode ver seus rostos, de modo que ele talvez jamais fosse capaz de reconhecê-los. E, uma dúvida ecoava em sua mente, à medida que o sonho ia se desenrolando. “Vingança contra quem?”, essa pergunta martelava o cérebro do jovem rapaz, deixando-o ainda mais afastado da sanidade. Quando despertou, já no crepúsculo, Susrak tomou uma decisão: iria acabar com toda a humanidade. Sim, todos os humanos eram culpados pela morte de sua irmã, e de outras pessoas inocentes. Essa era a mensagem de Tenebra, de acordo com o ponto de vista insano do clérigo. Todos os seres humanos seriam mortos por suas mãos e, no final, aqueles de quem ele se apiedasse, teriam a honra de retornar à vida como mortos-vivos, para servi-lo a para servir a Tenebra. Decidido a por seu plano em prática, Susrak partiu uma vez mais de sua casa, para conseguir todos os recursos para cumprir sua missão. E nada poderia fornecer mais recursos, fossem eles financeiros, mágicos ou conhecimentos, do que a vida de aventureiro. Assim, ele foi ao encontro de seus amigos, que num futuro distante, poderiam ter a honra de se tornarem seus servos zumbis.
Então, todos se reuniram novamente na mesma taverna em que tudo havia começado. Começaram a discutir sobre o futuro, sobre quais aventuras viveriam. Susrak lhes contou de sua “missão divina”, deixando todos alarmados, Nirvana em especial. A feiticeira tentou argumentar e convencer o rapaz a deixar de lado suas idéias de vingança, mas não obteve êxito e calou-se, confiante, pois sabia que caso fosse necessário, sua adaga poderia arrancar partes importantes do corpo de Susrak e impedi-lo de fazer barbaridades ainda maiores do que as que já aconteciam no mundo.
Depois foi a vez de Myrian lhes contar sobre seu passado e seus objetivos. Falou da tragédia que tinha acontecido com seu pai e de como seguira os rastros do assassino até Valkaria. E todos concordaram em ajudá-la no que fosse possível para recuperar os livros de Aesis e capturar o seu assassino. Mas, embora todos estivessem dispostos a ajudar, nem mesmo Myrian sabia como seria possível realizar aquela tarefa, já que Valkaria era por demasiado grande e os rastros da criatura tinham há muito desaparecido em meio a outros milhares de rastros.
Lohranus teve então a idéia de procurar entre os anúncios que decoravam a parede da taverna algo que pudesse ser utilizado por eles como oportunidade para iniciarem sua carreira como exploradores, aventureiros, heróis. Quando ele se levantou, porém, foi impedido de continuar por um brutamontes que invadia a taverna.
_ Ei você! Não fuja não! Venha me enfrentar! Tenho certeza que hoje eu o derroto! – desafiou o estranho quase aos gritos. Era um homem corpulento e alto cheio de músculos e pêlos espalhados por todo o corpo. Vestia apenas roupas simples, praticamente trapos velhos e caminhava a passos pesados e desajeitados. Seu rosto era rústico e deformado, monstruoso até, deixando evidente que se tratava de um mestiço, filho de orcs com humanos ou outra raça semelhante. Um cruzamento que, embora relativamente comum, era abominado em todo o território do reinado. O meio-orc sentou-se diante de uma mesa, e colocou seu braço sobre ela, chamando por Lohranus com a mão. – Venha! Da outra vez eu estava bêbado! Mas hoje estou sóbrio, vou vencer você!
_ Vamos lá então! Vamos ver quem é o mais forte! – respondeu Lohranus, aceitando o desafio.
Dois tibares de ouro rolaram pela mesa, tilintando até pararem sobre a superfície de madeira. Lohranus e seu desafiante agarraram-se um na mão do outro, e a um sinal do taverneiro a disputa começou.
Propositalmente, Lohranus fingiu ser mais fraco e deu uma vantagem ao seu adversário. Entretanto, ele esperava para vencer de um golpe só assim que o adversário se achasse vitorioso, no momento em que a mão do minotauro estivesse quase tocando a mesa. Mas, Lohranus sentiu algo estranho, era como se uma força mágica empurrasse sua mão para cima, ajudando-o a vencer a força do oponente. Magia! Sem hesitar, ele olhou para o lado e percebeu um comportamento estranho de Nirvana. A mulher olhava fixamente para os dois lutadores, e parecia concentrada em seus braços, como se estivesse fazendo alguma magia para ajudar seu amigo de Tapista. Então, quando chegou o momento esperado, Lohranus colocou toda sua força no braço e tombou o membro do oponente na mesa, quase o jogando ao chão.
_ Parabéns! Você é melhor do que eu, realmente! Mas ainda irei vencer você! – disse o meio-orc, ao se levantar da mesa e caminhar em direção à porta.
_ Você também é muito forte, e lutou com honra! Até a próxima! – despediu-se o minotauro.
O desafiante derrotado deixou a taverna de cabeça erguida orgulhoso de seu desempenho, mesmo apesar de ter perdido. Segundos após ele ter saído, entrou um homem de cabelo curto e castanho, muito bem penteado e limpo, repartido ao meio com precisão milimétrica. Seu rosto era limpo, sem um fiapo de barba sequer, e afilado. Possuía orelhas arredondadas e pequenas, e olhos atentos que percorriam, rapidamente, cada canto da taverna, até encontrar o que desejava, Lohranus.
_ Saudações novamente, meu amigo! Como tem passado? – cumprimentou o homem.
_ Vou bem, obrigado! Bom você ter aparecido aqui nessa hora! Não era você quem procurava pessoas fortes para trabalharem como gladiadores? – disse o minotauro.
_ Oh! Que maravilha! Sou eu sim! Por acaso você vai me dizer que pensou melhor na minha oferta e decidiu aceitá-la?
_ Não, não é isso! É que acaba de sair daqui um homem que pode interessá-lo!
_ Ah! Bem...ótimo! E como eu faço para encontrá-lo? – o homem parecia decepcionado.
_ Ele acaba de sair! Se você correr, poderá vê-lo ai na rua! Espere, tenho uma idéia melhor! Eu irei com você! – respondeu o minotauro.
_ Ora, mas que ótimo! – sorriu o homem.
Os dois saíram, Lohranus pediu a seus amigos que aguardassem um momento até que ele retornasse. Quando chegaram à rua, viram o meio-orc já dobrando uma esquina distante.
_ Lá está ele, acaba de entrar naquela rua! – apontou Lohranus.
_ Ótimo! Vamos até lá então! Venha, eu tenho um cavalo aqui! – respondeu o homem, apontando para um beco ao lado da taverna.
_ Eu não monto em cavalos! Vá você pegar o cavalo, eu vou atrás do homem antes que ele desapareça de vez! – respondeu, secamente, o minotauro.
_ Ora, que coisa! Está bem! Só peço que me espere, para que não nos separemos e...Nossa!!! Meu cavalo sumiu! Ajude-me a encontrá-lo, por favor! Deve estar no fundo do beco! – continuou o homem, correndo para o fundo da viela. – Venha, venha! Ajude-me antes que ele fuja! – pediu ele.
Então, Lohranus desconfiou que havia algo estranho naquilo, mas foi em direção ao homem mesmo assim, pois queria saber do que se tratava aquilo tudo. Antes, porém, deu uma batida na janela da taverna, fazendo um sinal para seus amigos, para que eles ficassem de alerta. O minotauro foi até caminhou, atento, na direção do homem. Quando se aproximou dele, ele correu para trás da taverna, fora do alcance dos olhos de Lohranus, dizendo que o animal estava fugindo. Lohranus ficou ainda mais ressabiado com a atitude estranha que o homem tomara, mas decidiu continuar para descobrir o que acontecia. Aproximou-se com cautela da extremidade do prédio da taverna e sacou a espada. Já armado, deu um passo adiante, entrando no estreito beco formado pela traseira da estalagem e outra casa. E caiu na cilada. Uma saraivada de flechas ligeiras veio na direção de Lohranus, que tentava se defender com a espada. Mas, por mais veloz que Lohranus fosse ao manejar sua espada, as flechas, disparadas por um numeroso bando goblin, eram ainda mais velozes e várias delas o atingiram, ferindo-o. Apesar de alvejado, os ferimentos não eram graves a ponto de fazer o minotauro recuar, mesmo estando em menor número. No entanto, com aqueles poucos ferimentos em seu corpo, Lohranus sentiu suas forças se esvaindo. A espada pesou em suas mãos e sua armadura parecia feita de chumbo, algo estava errado, e ele sabia disso. Tentou se afastar dos inimigos, ganhar tempo para recobrar o fôlego e contra-atacar, mas suas pernas o traíram, ele tropeço em si mesmo e foi ao chão. Seu corpo todo o traiu e já não respondia mais à sua vontade, permanecendo imóvel. Lohranus sentiu sua cabeça girando como numa vertigem, e suas pálpebras ficaram pesadas e sua visão difusa. A última coisa que viu, foi o homem, rodeado de goblins, gargalhando diante dele, enquanto dizia: “Agora você será nossa isca!”. Assim, Lohranus adormeceu, vítima da cilada de seus inimigos, longe de seus companheiros e totalmente indefeso.
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